Entrevista de Sofia Teixeira | Fotografias de Paulo Alexandrino/Global Imagens
Formou‑se em Filosofia e Direito, foi professor no secundário, exerceu advocacia e chegou à magistratura quase aos 40 anos. Hoje tem 56, é juiz de família e menores desde os 44 e assume‑se como defensor dos filhos quando os pais estão em guerra. Muitas vezes consegue o milagre de pais inimigos passarem a ter uma relação civilizada, talvez porque prefere conversar com eles em vez de ler relatórios.
Entre os quatro mil processos tutelares cíveis que o juiz Joaquim Manuel Silva tratou nos últimos sete anos, só levou dois ou três a julgamento. É conhecido por flexibilizar os procedimentos de forma a agilizar a resolução dos casos – telefona ele próprio a fazer convocatórias e envia mensagens por Facebook, se necessário. Está na comarca de Mafra há um ano, mas a missão é a mesma: impedir que os pais destruam a infância dos filhos, por melhores que sejam as boas intenções deles.
Em Portugal não há estatísticas oficiais acerca dos regimes de regulação das responsabilidades parentais fixados pelos tribunais. Do que observa, tem noção das percentagens?
Informalmente. Há um estudo de uma procuradora minha amiga para o qual entrevistou 28 juízes – entre os quais eu. Na amostra, que engloba a zona norte e a Grande Lisboa, apurou cerca de três por cento de residências alternadas.
A percentagem de casos em que fixa residência alternada é bastante diferente. Tem pelo menos mais um zero.
Nunca fiz contas ao total, mas vou fazendo a alguns períodos de tempo e costuma andar entre os vinte e os quarenta por cento. Como vou fazer um doutoramento nesta área, comecei a fazer a recolha dos meus casos desde setembro de 2017 e, nesta amostra, ainda pequena, que rondará os sessenta casos, tenho 41 por cento de residências alternadas.
Em que situações é que fixa este regime?
Em dois casos: por acordo dos pais – nestas situações nem discuto, dou apenas meia dúzia de conselhos em relação a questões operacionais – e quando há conflito. Se são ambos bons do ponto de vista pessoal e de capacidade parental mas estão em conflito, por norma, opto pela residência alternada.
«Não é a residência alternada que é má para o conflito: o conflito é que é mau para tudo, por isso é aí que temos de intervir.»
O senso comum e a maioria dos seus colegas defendem o oposto: que, em caso de conflito, não há condições para a residência alternada.
Também tinha essa ideia e há colegas que ainda a defendem, mas hoje tenho uma opinião diferente. Ao fixar a residência exclusiva ficamos com um progenitor que ganhou e outro que perdeu: se a relação já era má, pior vai ficar e o conflito aumenta. Ao estabelecer uma igualdade entre os pais que os responsabiliza aos dois, normalmente começam a ter o cuidado de proteger os filhos, desenvolvem estratégias para lidar um com o outro e o conflito diminui. Não é a residência alternada que é má para o conflito: o conflito é que é mau para tudo, por isso é aí que temos de intervir.
A nossa lei está desajustada e precisava de ser mudada?
Nem tanto. A nossa lei é muito inovadora: diz que [Lei nº 61/2008, número 5 do artigo 1906º], ao fixar um regime, devo escolher o progenitor que se disponibilize para promover a relação habitual do filho com o outro. Isso, não sei se de forma intencional ou não, favorece aquele que facilita, logo, promove a vinculação com o outro. A criança aproxima‑se de quem os pais se aproximam – emocional e comportamentalmente – e afastam‑se de quem os pais rejeitam.
Onde é que fica aqui o conceito tão falado de «pessoa de referência»?
É um conceito pobre e redutor que foi baseado numa decisão antiga de um tribunal superior americano e que, até nos Estados Unidos, já foi afastada. Às vezes costumo dizer a brincar que uma empregada doméstica interna preenche o conceito de pessoa de referência: leva e traz da escola, dá banho, alimenta, brinca. E, no entanto, não passa pela cabeça de ninguém entregar‑lhe a guarda da criança. Por outro lado, o objetivo de fixar responsabilidades parentais não deve ser escolher um, mas antes verificar as potencialidades dos dois e organizar a nova relação entre eles.
Estamos a colocar o foco no problema errado? A questão é mais a relação dos pais do que o regime escolhido?
O problema nunca está no regime: quando os pais se entendem todos os regimes são bons. Se um pai e uma mãe têm uma boa relação e ambos querem uma residência exclusiva com um deles, não me oponho. Mas se há conflito, eu tenho uma situação de grande perigo para o desenvolvimento da criança e, enquanto juiz do processo, tenho de me preocupar com isso e intervir. Não posso limitar-me a dizer com quem é que a criança fica. Mas isso implica passar‑lhes primeiro uma série de conhecimentos que, por norma, eles não têm.
«Até 2005, nem por acordo entre os pais fixava residência alternada, havia um conjunto de convicções culturais que diziam que ela era má.»
Como é que faz essa intervenção para abordar pais em guerra?
Com terapia cognitiva: introduzo conhecimento para mexer com os sentimentos deles. Explico‑lhes o conceito de vinculação, apresento estudos que mostram que o conflito parental tem efeitos semelhantes aos maus-tratos, mostro que o ambiente hostil faz que haja níveis elevados de cortisol no cérebro da criança, que há sinapses cerebrais que não se criam. A criança não desenvolve o cérebro emocional, só o chamado cérebro reptiliano, responsável pelos instintos básicos de lutar ou fugir.
E recorre a peritos noutras áreas, quando se justifica?
Os pais gostam dos filhos e não querem este resultado tão danoso. Na maioria dos casos, a explicação é suficiente para os motivar para a mudança, para protegerem os filhos. Em casos mais complicados, há técnicos de mediação e psicologia a apoiar o processo.
«Os miúdos que me chegavam com residência alternada tinham um desenvolvimento, em regra, muito acima dos que estavam em residência exclusiva.»
Sinapses, cérebro reptiliano e cortisol não são o tipo de palavras que costumamos ouvir aos juízes. De onde lhe vem um discurso tão alicerçado na ciência?
A interdisciplinariedade talvez tenha vindo da primeira licenciatura que fiz, em Filosofia. Mas as minhas posições nessa área foram uma resposta às perplexidades da prática. Até 2005, nem por acordo entre os pais fixava residência alternada, havia um conjunto de convicções culturais que diziam que ela era má.
Que convicções eram essas?
Ter duas casas, as rotinas não serem as mesmas, a possibilidade de potenciar o conflito. Mas os casos começaram a mostrar‑me o contrário. Os miúdos que me chegavam com residência alternada tinham um desenvolvimento, em regra, muito acima dos que estavam em residência exclusiva. Estava a fazer a tese de mestrado [Universidade Autónoma de Lisboa, A Guarda Compartilhada., A Família das Crianças na Separação dos Pais, 2016, Ed Petrony] e aproveitei para fazer investigação para tentar perceber através da psicologia, da neurociência e da antropologia, porque é que isto era assim.
O mito do aumento do conflito já explicou. Como é que hoje rebate os outros argumentos, relacionados com duas rotinas e duas casas?
O que é a rotina para uma criança? Pense na adaptação ao infantário: na ausência do pai e da mãe, e indo ela para um sítio que de início lhe pode parecer adverso porque os pais não estão, ela sente segurança quando começa a perceber que todos os dias a vão buscar a determinada hora. E quando percebe isso, consegue estar a explorar, a aprender, sem estar em stress. Se um casal se separa e temos dois vinculadores, as rotinas mais importantes, no geral, vão manter‑se. E mesmo que haja algumas diferenças em casa, os miúdos adaptam‑se.
E a questão da falta de estabilidade gerada por haver duas casas?
Comecei a perceber que, ao contrário do que pensava, quanto mais pequenos melhor a adaptação. Para o adulto a casa é um lugar de segurança, mas nas crianças o lugar de segurança é a presença do pai e da mãe. É por isso que os mais velhos têm mais dificuldade em ter duas casas: com a aproximação da idade adulta, a vinculação ao pai e à mãe pesa menos na sensação de segurança e a autonomia leva‑os a ficar mais chegados ao espaço físico, ao lugar. Oiço todos os miúdos a partir dos 4 anos, e nos adolescentes, por norma, respeito a opinião deles porque sei que o lugar já tem muita importância.
Isso vai contra mais uma crença muito difundida: que a residência alternada é especialmente má para as crianças pequenas.
Nos bebés há na realidade uma certa limitação por causa da amamentação e nos tempos de ausência de cada um dos pais, mas apenas isso. O bebé pode perfeitamente estar dois dias com o pai e dois dias com mãe. Já fixei residências alternadas a crianças de 3 meses, 6 meses. São processos que já correram e as crianças ficaram muito bem.
«Há quem me acuse de ser contra as feministas, mas repare: eu é que sou feminista. Porque é que a responsabilidade de tudo o que está relacionado com os filhos tem de ficar exclusivamente com as mães?»
As mães têm tendência a resistir à ideia?
Muitas vezes resistem inicialmente, mas passado um tempo, quando voltam para fazermos o acompanhamento do processo, já vêm com outra postura. No outro dia, uma dizia‑me: «Tinha razão, foi a melhor coisa que podíamos ter feito, para toda a gente, até para mim.» Mas socialmente as mulheres têm uma grande pressão: se não ficarem com as crianças a morar só com elas são catalogadas como más mães.
Também sente esta pressão e também é criticado?
Há quem me acuse de ser contra as feministas, mas repare: eu é que sou feminista. Eu é que defendo – também – as mulheres. Porque é que a responsabilidade de tudo o que está relacionado com os filhos tem de ficar exclusivamente com as mães? Onde é que lhes fica o tempo para a vida pessoal, para a carreira? Fala‑se muito na igualdade no trabalho, mas, para isso, tem de se falar primeiro em igualdade na parentalidade. A igualdade da mulher passa por envolver e responsabilizar o pai nos cuidados aos filhos.
Há casos em que os papéis típicos estão invertidos e tem uma mãe a favor da alternada e um pai que não quer assumir essa responsabilidade?
São casos raros, mas existem. Muitas vezes percebe‑se que são indivíduos com infâncias complicadas, com histórias de abandonos, o amor de pai não está dentro deles. Mas se proponho alternada e o pai diz que não quer, isso já é indicador de muito baixa capacidade parental, logo, não vou sujeitar a criança a isso.
«Resolvi 1100 processos entre janeiro e dezembro de 2017. É exigente e muito duro para mim, do ponto de vista emocional. Mas nunca é um sacrifício.»
Está a iniciar o doutoramento. Qual vai ser o tema?
É sobre justiça restaurativa – que eu acredito que deve ser o paradigma processual na jurisdição da família e das crianças. É uma justiça transformativa que, em vez de levar estes casos à sala de audiências para proferir uma decisão, passa por fazer este trabalho com os pais, a escola e a comunidade que acaba por os transformar e recuperar a família da criança na parentalidade.
Que tipo de esforço é que todas essas diligências implicam?
Resolvi 1100 processos entre janeiro e dezembro de 2017. É exigente e muito duro para mim, do ponto de vista emocional. Mas nunca é um sacrifício quando se faz uma coisa por paixão. Para fazer este trabalho é preciso gostar de pessoas, e é preciso querer mesmo ajudar estes pais, para que eles possam ajudar os filhos.