O que se esconde numa colher de sopa

Notícias Magazine

Num restaurante no centro de São Tomé, enquanto comia uma sopa tradicional, com sabor a coentros, informaram­­-me que o nome desta erva, em crioulo forro, era selo sum zon maiá, que significa «cheiro do senhor João Maria».

Diz ­se, verdade ou mito, que o senhor João Maria foi um alentejano por quem uma mulher se apaixonou e que, por este cozinhar com coentros, baptizou assim a erva. «Cheiro do senhor João Maria.»

É muito bonito que numa colherada de sopa estejamos a comer uma declaração de amor.
Curiosamente, os coentros, depois de florescerem, ganham outro nome, cundu muala vé, que significa «cabelo de mulher velha» (esperemos que não tenha sido o senhor João Maria a baptizar assim a senescência dos coentros).

Ouvi da escritora guineense Ode­te Semedo, que tem a invulgar capacidade de escavar pequenos tesouros nas expressões do quotidiano e de detectar aquilo a que, pela constante utilização, nos tornamos insensíveis, alguns exemplos de como a beleza se pode esconder nas coisas mais triviais, na linguagem de todos os dias.

Disse ela que, quando alguém está feliz, quando se sente leve, usa a expressão «os meus pés não alcançam o chão» (n na ianda, ma nha pes ka na iangasa tchon / caminho, mas os meus pés não alcançam o chão).

Douglas Adams tem uma frase que de algum modo se assemelha à expressão anterior, diz que a arte de voar é cair e falhar o chão. Outro exemplo dado pela Odete estava relacionado com o modo como nos relacionamos.

Quando não vemos alguém durante um tempo, diz ­se que não sentimos essa pessoa (n ka sinti bumame e dias. I ka sta?/ não senti a tua mãe por estes dias. Ela não está?) E ainda deu um terceiro exemplo: «sabor» é sinónimo de bom. «Sabe olhar aquela rapariga» é o mesmo que dizer que ela é bonita. É também na Guiné que, em vez de nos saudarem pela manhã com um «bom-­dia», nos perguntam como amanhecemos.

Por vezes, viajamos até ao outro lado do mundo para ver uma paisagem impressionante e descobrimos outros tipos de paisagem, que podem estar numa frase que encontramos na boca de alguém, ou na nossa (porque já as dizemos desde que aprendemos a falar, mas tornámo-­nos imunes à sua beleza).

As coisas tendem a ficar vazias se são repetidas mecanicamente e florescem quando lhes damos atenção. Ao olhar para dentro de expressões, palavras, frases, encontramos outra forma de viagem, a que se esconde numa colher de sopa e que faz que os pés não alcancem o chão.