Sean Spicer, o ex-porta-voz que explicou a sempre voz inexplicável de Trump, reapareceu na noite dos prémios Emmy. O que faz um famoso aparecer? Muitas vezes a resposta é: porque aparece. A fama é um bocado como a anedota, que tem um momento inicial, alguém a inventou, mas quase nunca sabemos como e quando nasceu. Mas depois, logo que se é famoso, a condição passa a ser um valor em si.
A fama é uma ilusão que parece trabalhar em moto contínuo que, aliás, não existe nem nunca existiu. A fama aparece – logo, é –, julga alimentar-se pelo movimento perpétuo, que não existe, e um dia desaparece e só o próprio dá por isso. Coitado, vai sofrer pela ausência de uma ilusão. O que é injusto porque a nós também, os mirones dos famosos, deveria fazer-nos doer por emprestarmos o nosso tempo, atenção e cumplicidade a uma coisa de que não entendemos a razão de existir. E foi assim que na noite de domingo, num palco planetário, na entrega dos prémios Emmy, vimos reaparecer Sean Spicer
Por acaso, desse ex-porta-voz, lembrámo-nos quando demos por ele a primeira vez. Tinha havido a tomada de posse do 45º presidente americano, em 20 de janeiro, e, no dia seguinte, Spicer disse, por trás do púlpito da sua nova função: “Foi a maior cerimónia de tomada de posse de sempre, ponto, parágrafo.” Não fora, como mostravam todos os números idóneos. Não, não foi a maior multidão a assistir em Washington, nem de gente a seguir a transmissão televisiva. O facto em si, o tamanho da assistência, era relativamente sem importância, mas a mentira e a forma perentória com que foi dita anunciavam um estilo e uma política, ambos perigosos.
O homem tinha um púlpito e este nem foi só para arengar – já um despropósito, num país com os melhores jornais do mundo –, era mais. Os jornalistas tinham de ser postos na linha. Às perguntas, respondia-se com soberba ou violência. Títulos centenários de luta cívica e informação política – The New York Times, The Washington Post… – eram acusados de fake news. As conferências de imprensa na Casa Branca passaram a trincheira para abate do crédito de jornais e jornalistas.
Alguns destes foram proibidos de entrar. E isso pela boca de um tolo que um dia disse “às vezes nós podemos não estar de acordo com os factos” – claro, mas não ao ponto de os recusar como factos. Um ignorante que disse que “nem Hitler [esse, do Zyklon B nos campos de concentração] usou armas químicas contra o seu povo”…
Seis meses, todos os dias, trágicos ou cómicos, Sean Spicer cumpriu a sua missão suja de combater a verdade. Soldadinho verbal da faceta mais perigosa do político Donald Trump. Ridículo e estúpido, Spicer foi gozado sobretudo pelos comediantes que diariamente comentam nas televisões americanas – uma salutar especialidade americana. Exalava dele a sujeição ao dono, nas frases trôpegas e no olhar de cão batido. E quando ele saiu da Casa Branca, em julho, já estava no rol dos tipos a merecer alguma caridade. Os mais ingénuos esperavam talvez que ele fosse fazer- se esquecido.
Qual quê! Entrou-nos na madrugada dos Emmy, palco adentro… empurrando um púlpito. Foi como se Jack fizesse questão de reaparecer em público com uma faca de estripar prostitutas. E para que não duvidássemos que era mesmo ele, Sean Spicer gritou: «É a maior multidão que jamais assistiu a uma cerimónia dos prémios Emmy, ponto, parágrafo.» Topam? Sou mesmo eu… Desavergonhado! Como se ele rir de si próprio já o faz uma pessoa decente. Como se o par – rir e Sean Spicer – não permitisse uma só conjugação: dele, nunca com ele.
A fama ilusória quando nos agarra é uma lapa. Mas a questão nem é essa, é: o que nos faz ser cúmplices da redenção de canalhas?