O primeiro dia do resto do nosso abandono

Notícias Magazine

A chuva que caiu esta noite não chegou para apagar todos os focos, mas pelo menos o ar amanheceu um pouco mais limpo. Ontem, saímos à noite de Vouzela, passámos por Viseu e desaguámos em Nelas – e percorremos todo esse caminho com um ar carregado e espesso, difícil de respirar.

As roupas, os carros, os cabelos a cheirar a fogueira, tudo coberto por uma camada branca de cinza, de vez em quando um mais incêndio à beira da estrada. Lembrei-me muitas vezes de A Estrada, de Cormac McCarthy, um dos mais duros romances que alguma vez li. Por isto: o que vi nos últimos dias no interior português corresponde na perfeição ao cenário que imaginei num livro pós-apocalíptico. O arvoredo negro, o chão fumegante, uma extensão inimaginável de terra carbonizada onde a vida não consegue crescer.

Era bom que a chuva conseguisse lavar todo este negrume, como água corrente a limpar pimentos depois de eles irem à brasa. Mas a floresta continua de luto. Hoje o que mais se vê são grupos de pessoas nos limites das aldeias, ou mato dentro, a avaliar as perdas. Ontem foi dia de desespero e raiva, hoje é o primeiro dia de verdadeira solidão.

Milhares de pessoas estão neste momento a confrontar-se com a dimensão real do que perderam. Familiares e amigos e animais e casas e terrenos. São muitas vidas destruídas, é um aglomerado incalculável de dores específicas, individuais, irrepetíveis. Houvesse um medidor da agonia e o interior centro ver-se-ia angustiado do espaço.

Não há rede de telemóvel, nem televisão, nem internet. Em muitas aldeias afetadas pelos incêndios também não há água nem eletricidade. É como se a realidade toda quisesse dizer a esta gente o quão tremendamente sozinhos se têm de ver neste mundo. Um espelho cruel e apesar de tudo justo.

As décadas de deserção do interior português retomam hoje o curso. As políticas vão continuar a ignorá-los, os jornalistas só voltarão na próxima tragédia, os investimentos e as compensações seguirão como promessas vagas. Muda rápido, Portugal, para que hoje não seja o primeiro dia do resto do nosso abandono.