O que pensam das alcachofras?

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Eu lia a última edição de El País Semanal, a revista de domingo do diário espanhol, e na última página sorri. Tinha-a percorrido toda, saltando só as páginas de moda. A ideia começou a emergir logo na capa e confirmei-a na última crónica da revista. Sorri, porque um flash recordou-me uma banda desenhada da minha juventude parisiense, Ils ne pensent qu’à ça (Eles só Pensam Nisso) do humorista Wolinski, nos finais da década de 1960.

Os desenhos eram publicados no Hara-Kiri, antes de este mudar de nome para Charlie-Hebdo, o semanário onde, quase meio século depois, Wolinski e camaradas seriam assassinados.

Era de uma sensação dolorosa, o que suspeitei na revista espanhola. Mas gostei que a primeira relação que fiz dela tenha sido com uma série humorística francesa, em que o personagem, um homem comum, tinha uma só ideia fisgada: elas. Ao homem, Wolinski desenhava-o com desdém. Um tipo comum, fraco, calvo e de barriguinha, pedinte, servo de um desejo – e de certa forma acho que ele nos desenhava bem.

Já elas eram sublimes, donas da situação e provocadoras. A revista espanhola também estava subjugada, pareceu-me, por algo extraordinário. Por estes dias os espanhóis não pensam senão nisso. Mesmo quando não o dizem explicitamente, como acontecia naquela edição de El País Semanal.

Na capa, a chamada e a foto principal iam para a guerra civil jugoslava que estraçalhou a península dos Balcãs, há um quarto de século. Daí, à minha suspeita logo inicial de que a escolha de El País Semanal não era estranha ao receio de outra península, a sua (e nossa), também poder vir ser vítima de uma guerra civil. Lá dentro, esse artigo abordava o último julgamento dos criminosos de guerra, no Tribunal de Haia, o que justificava a atualidade.

Mas o título do artigo, «O fim de uma era», evocava como que uma prece, um desejo de que não se repita… E, caros leitores, só ingénuos ou tolos – ou distraídos como os portugueses andam hoje do mundo – podem dar como garantido que a crise catalã não vá dar em guerra civil.

Depois, os sucessivos cronistas (El País não se poupa em grandes assinaturas), sem nunca serem explícitos, falam de uma perda. Vicente Molina Foix escreve sobre uma irmã que se esfumou pelo Alzheimer, com a dor de que quando ela estava atenta talvez se ignorassem (sabías tú quién era yo?). Com um argumento de autoridade, Javier Cercas agarra-se a uma grandeza de Espanha, recorrendo a uma frase: «Ah, se nós tivéssemos a América Latina –, dizem que disse François Mitterrand.»

Comentando uma foto qualquer, Juan José Millás explica que «para narrar bem uma história necessitas de um fio condutor à volta do qual juntas os diferentes assuntos» – afinal, o método usado naquela edição do El País Semanal, todos à volta do mesmo. Rosa Montero cita a despropósito Joan Manuel Serrat, catalão e perseguido pelo franquismo, hoje crítico do independentismo. E Javier Marías, falando dos seus sobrinhos-netos, escreve sobre o que séculos juntam num «enigmático hilo de continuidad»…

Todos eles intelectuais reputados, insuspeitos de terem recebido uma cartilha ditando-lhe ordens sobre o que deveriam escrever. E, no entanto, fica claro que todos eles ne pensent qu’à ça, só pensam estar nas vésperas de um acontecimento que pode marcá-los para sempre.

A 21 de dezembro, a Catalunha vai votar. O quê é um enigma terrível… Manuel Rivas, um outro cronista, parece fugir ao grande assunto e escreve sobre o que é escrever. Diz que é sobre isso que fala quando vai às escolas. Um miúdo de 8 anos fez-lhe uma pergunta bendita: «O senhor o que pensa das alcachofras?» E Rivas remata sobre o bom que são as pequenas coisas quando se está em «estado de choque».