Os cavalos também curam

Texto Ana Carreira | Fotografias Orlando Almeida/Global Imagens

É uma égua ruça, crina branca, com uma cicatriz na perna. Estrela levanta a cabeça e observa ao redor. Orelhas espetadas e olhar atento na pessoa que se encosta à cerca. O movimento é suave, quase como um cumprimento. E nesse simples esgar de boas-vindas dá­‑se o pontapé de saída para uma sessão experimental do método Kiron, uma metodologia de intervenções assistidas por cavalos. Dura sessenta minutos e é uma experiência tão agitada quanto apaziguadora.

A comandar as operações está a psicóloga francesa Nathalie Durel, 51 anos. É a maior especialista em Portugal na área de psicoterapia assistida por equinos. Por estes dias, tem já pedidos em espera na Quinta do Cavalo Kiron, em Sintra, um santuário terapêutico que fundou há dez anos com uma equipa multidisciplinar – onde 11 cavalos e póneis são a peça­‑chave do método Kiron, um trabalho com o carimbo do Clube UNESCO desde março de 2016.

Durel define­‑o como uma abordagem única que alia as capacidades naturais do cavalo com as competências técnicas do terapeuta. «No método Kiron trabalhamos com equinos em liberdade de modo a manter o seu bem­‑estar físico e mental para possibilitar que a sua interação com as pessoas seja genuinamente fiel àquilo que são naturalmente».

Nathalie Durel, 51 anos, é uma psicóloga francesa que percebeu os efeitos terapêuticos dos equinos e abriu um centro Kiron em Sintra.

No seu livro Os Cavalos Terapeutas (ed. Modocromia), publicado no ano passado, Durel explica como os animais se convertem em sólidos parceiros na terapia dos facilitadores humanos, ajudando a traduzir aos pacientes as suas dinâmicas criadas na sessão, de modo a efetuar dentro de si as mudanças necessárias na área da psicoterapia e desenvolvimento pessoal.

E há de tudo, desde problemas de ansiedade ou depressão até disfunções familiares, casais em terapia, grupos de empresas, universitários ou toxicodependentes em recuperação, estes últimos numa parceria com a Clínica Heritage de Cascais. «Está provado que oitenta por cento do que executamos fica memorizado em nós, o que torna este método muito eficaz em todas as intervenções, tanto na área da saúde mental como na do desenvolvimento humano», diz Nathalie Durel.

Estudos internacionais confirmam que intervenções assistidas por equinos aumentam a rapidez e o sucesso do processo terapêutico interior quando comparado com outras abordagens mais clássicas. As sessões decorrem à porta fechada. Por razões éticas, Nathalie Durel não autoriza ninguém a entrar, só em dias abertos ao público é possível conhecer a quinta, os cavalos, e sentir a paz magnética do local.

O método Kiron segue uma série de exercícios simples, sempre no chão com o animal que serve como espelho mediador entre o psicólogo e o paciente.

Antes de cada sessão, há seguros de risco civil e termos de responsabilidade para assinar, para depois se seguir um breve questionário. Quando se sai, e a partir do momento em que se escolhe o animal, tudo pode ser diferente para cada pessoa.

O método Kiron segue uma série de exercícios simples ou tarefas a executar em espaço aberto ou na boxe, sempre no chão com o animal que serve como espelho mediador entre o psicólogo e o paciente.

Voltemos então à égua Estrela, ao seu caminhar silencioso. Também ela se reabilitou na quinta, graças ao cuidado da equipa que quis resgatá­‑la de uma vida de maus-tratos físicos, de onde resta a cicatriz na perna e outras que vai conseguindo vencer todos os dias.

«Tal como nós, também eles têm as suas feridas. A Estrela estava num estado deplorável quando chegou, foi preciso muita paciência para pô­‑la de pé», conta Nathalie, que assinala veemente a sua posição sobre a forma como os animais são considerados no mundo equestre. «Muita gente não sabe que os cavalos são tratados de uma forma muito pouco digna, muitas vezes não são devidamente reconhecidos», esclarece a terapeuta.

«Há muitas pessoas que têm medo, não se aproximam sequer dos cavalos nas primeiras sessões, aqui a liberdade é total», explica a terapeuta.

Estrela é um dos seis elementos da equipa dos cavalos, ao lado de Meiguinho, Turquesa, Samarra, Grey e Milagros. Apenas a égua Lalune evita pessoas. «Entrou a tempo de não ser abatida pelos proprietários, já não servia para competir em saltos de obstáculos, fê­‑lo durante 22 anos, é muito comum isto acontecer», relata a psicóloga.

A égua castanha observa­‑nos de longe, não participa nas sessões, não se aproxima das pessoas, e para Nathalie é impensável forçá­‑la. A psicoterapeuta assegura que o comportamento dos equinos no seu ambiente natural é fundamental para compreender as suas atitudes dentro das sessões com humanos, uma das premissas do método Kiron que trouxe para Portugal.

Agora é preciso levar a égua, por uma corda, até ao redondel ao ar livre. É neste espaço que a «consulta» continua, com lugar para outros momentos, como levar o animal pela corda e conduzi­‑lo, ou simplesmente estar perto ou tocá­‑lo, se for possível.

Estudos internacionais confirmam que intervenções assistidas por equinos aumentam a rapidez e o sucesso do processo terapêutico interior comparado com abordagens mais clássicas.

Para muitas pessoas, este contacto não é imediato, há até quem prefira os póneis, na altura de escolher um animal para a sessão. «Há muitas pessoas que têm medo, não se aproximam sequer dos cavalos nas primeiras sessões, aqui a liberdade é total, não se pretende minimamente que se sintam logo confortáveis junto deles, não é esse o objetivo», explica.

A Academia Kiron é o sítio onde dá a formação do método desde há sete anos, este mês iniciou um novo curso com todas as vagas preenchidas. Susana Milheiro Silva, também psicóloga clínica, trabalha atualmente com Durel e tem o seu consultório próprio na quinta. T

Ter aprendido o método Kiron mudou a sua vida, até porque sempre teve «pânico» de cavalos. «Era impensável aproximar­‑me sequer e além de ter vencido muitos medos, tem sido uma revelação na minha vida profissional e pessoal», confessa.

QUANTO CUSTA

O dia­‑a­‑dia na Quinta Kiron exige uma dedicação total, sem folgas nem férias. «Este é um trabalho de 365 dias por ano, sem direito a pausas, de uma exigência e dedicação extremas», assegura a fundadora que tem aplicado muitas das suas poupanças pessoais nas despesas que chegam aos 3000 euros mensais, com custos fixos com aluguer, alimentação, manutenção, sem contar com os cuidados veterinários. Até agora, nunca conseguiu nenhum apoio financeiro para também poder baixar o preço das consultas que se situam nos cem euros por sessão. Saiba mais AQUI.

A PSICOLOGIA DOS CAVALOS

Pensar no cavalo como psicólogo é perceber, antes de mais, que o cavalo cria um espaço aberto de comunicação com o paciente, a nível externo (corporal) e interno (emocional), facilitando a superação de conflitos e as tomadas de consciência sobre as formas de ser e de estar. Segundo a terapeuta francesa que aprendeu de perto com as zoólogas britânicas Lucy Rees e Marthe Kiley­‑Worthington na área da etologia equina, perante os cavalos «estamos mais presentes, mais conscientes das nossas atitudes e dos nossos gestos, tornando este método altamente poderoso em termos psicocorporais».