Liniker : «sou transsexual, mulher e cantora do Brasil»

Notícias Magazine

Texto de Ana Patrícia Cardoso | Fotografia DR

Ainda que tenha apenas 22 anos, Liniker fala e gesticula com a confiança de quem sabe quem é e ao que veio. Conversa pausadamente, tom meigo, sem apressar os assuntos, ainda que a entrevista tenha hora para acabar.

A cantora da banda Liniker e os Caramelows está em Portugal, pela segunda vez, para atuar no festival Vodafone Mexefest. A primeira aconteceu em junho, para um concerto no MusicBox, em Lisboa, e o convite para voltar foi uma surpresa: «vir duas vezes, no mesmo ano, à Europa é incrível!»

Em pouco mais de dois anos de sucesso, Liniker é já uma das caras mais conhecidas da nova geração de artistas brasileiros que estão nos concertos – e nas ruas – a protestar contra o preconceito. É mesmo por aí que começamos a conversa que vai da música à política, sem nunca esquecer o afeto.

O preconceito combate-se com música?
Sem dúvida. Através da música, não só me fortaleço como sei que estou a fazê-lo por outras pessoas também. Com as minhas letras, espero que elas sintam que podem ser o que realmente são, sem receio do julgamento. É uma arma de resistência e de amor, sabe? Precisamos muito de nos amar. Saber que passo afeto nas minhas músicas é fundamental.

Em entrevistas do ano passado dizia: «Tirei o género da minha vida. Eu não me chamo de “a” Liniker, “o” Liniker, apenas Liniker»…
Eu acho que na verdade ainda estava em transição, em vários aspetos. Dei-me o espaço e o tempo que precisei, sem ceder a pressões de rótulos. Eu sentia-me não binária, sem precisar definir-me e estava muito bem assim. Fui sempre muito honesta e talvez seja essa a razão pela qual o público se identifica comigo.

Um dia li em algum lugar «o cantor» e senti-me estranha. Então, entendi que era «a» Liniker.

Agora é «a» Liniker.
Sim, sou transsexual, mulher e cantora do Brasil. Chegou uma hora em que senti a necessidade de me posicionar. Um dia li em algum lugar «o cantor» e senti-me estranha. Então, entendi que era «a» Liniker.

Ainda há muito desconhecimento sobre a transsexualidade. Sente que precisa estar sempre a explicar-se?
É muito importante dar luz ao tema, falar abertamente sobre isso, para que as pessoas percebam que é uma coisa natural, que está em todos os lugares, que não é um problema.

Quando comecei a escrever, estava sempre a dedicar as músicas a alguém. Sempre escrevi desse lugar de compaixão. Ainda hoje é assim.

Começou a compor as músicas do primeiro álbum, Remonta, quando ainda era adolescente e a viver uma fase de transição muito profunda. Escrever era a terapia?
(Sorri) Sim, sim, sem dúvida. Eu comecei só a escrever, nem pensava ainda em cantar. Quando o fiz na frente de todos, foi um avanço enorme.

Qual a mensagem dessas primeiras letras?
Afeto. Sobretudo, afeto. Quando comecei a escrever, estava sempre a dedicar as músicas a alguém. Sempre escrevi desse lugar de compaixão. Ainda hoje é assim.

Depois de um primeiro álbum de sucesso e do sucesso que tem tido, qual é o caminho agora?
Não tenho certeza absoluta. Tenho mais do que há uns anos, isso sim. Hoje, com 22, já sinto que mudei o jeito de escrever, mudei a forma como me comporto no palco, sou muito mais segura, interajo com a banda. Estou cada vez mais curiosa, quero experimentar mais, colaborar com outros artistas e aprender com eles. Essa parceria é essencial.

Quando nasce a banda Liniker e os Caramelows?
Nos encontrámos no interior de São Paulo, Araraquara, a minha cidade, em dezembro de 2014. Começámos a tocar juntos naturalmente, por afinidade mesmo. No ano seguinte, gravámos o EP Cru e o disco através de uma campanha de crowdfunding que correu muito bem e que nos deu muita força. E aqui continuamos.

Usa muito as redes sociais para se posicionar e para divulgar o vosso trabalho?
Sem dúvida, as redes sociais são uma ferramenta poderosa para nos aproximarmos do público, para darmos a nossa opinião sem qualquer interferência. Hoje, é um complemento importante da nossa imagem.

Em todos os meus concertos tem o grito «Fora Temer», isso é certo. As pessoas quando aplaudem o meu nome, a minha existência, é também uma forma de protesto.

É impossível não falar da situação atual do Brasil. Tem-se vivido momentos complicados com a queda da Dilma, a tomada do poder por Michel Temer, o aumento da violência nas ruas. Os artistas estão, ou não, a usar cada vez mais a sua voz?
Este momento é muito triste de assistir e de viver. É um retrocesso na nossa cara. As pessoas estão revoltadas, zangadas e querem falar, precisam falar. Quantas bandas existem no Brasil? Milhares! E muitas delas estão falando de afeto, género, igualdade e liberdade. Não dá para ficar indiferente. Linn da Quebrada, Cozinha Mineira ou Tássia Reis são exemplos claros de que temos artistas com muita coragem e atitude e que merecem ser ouvidos.

No Brasil, os seus concertos são sempre interventivos?
Em todos tem o grito «Fora Temer», isso é certo. As pessoas quando aplaudem o meu nome, a minha existência, é também uma forma de protesto.

A música voltou a ter um propósito político?
Sim! Por vezes, não percebemos que estamos a fazê-lo mas está enraizada essa necessidade porque é o que vivemos todos os dias. É importante ter vozes que nos unifiquem enquanto povo e que quebrem esses preconceitos idiotas.