Texto de Ricardo J. Rodrigues | Fotografia de Leonardo Negrão
Podemos definir este projeto como uma escola de ativismo?
Sim, pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar porque nas Escolas SOMOS as pessoas saem dos seus espaços de rotina e conforto para imergir em realidades diversas, tudo em aprendizagem com outras pessoas. Da mesma forma que se ganham amizades, também se ganham causas que carecem de esforços ativistas. Aprende-se a identificar o que não vai bem, a agir para transformar, um passo de cada vez. Frequentemente, as pessoas saem daqui com muita vontade de transformar os contextos do seu trabalho ou mesmo das vidas que se propuseram viver. Faz lembrar aqueles livros do Paul Auster em que as personagens deixam tudo para trás e lançam-se à aventura do que quer que venha a seguir, porque faz muito mais sentido do que quer que esteja para trás.
É a terceira edição da Escola Somos, o que já dá para ter uma boa noção de como os movimentos cidadãos estão a funcionar em Portugal. Quais são as grandes lacunas nestas organizações?
Por princípio, qualquer movimento de cidadania é positivo, porque celebra direitos de associação e participação fundamentais para a dignidade das pessoas em qualquer sítio do mundo. Mas assistimos a muitas possibilidades de perversão da democracia sob a égide da cidadania. Por exemplo, organizações que desconhecem o território onde trabalham, distantes dos grupos a quem se dirigem, instrumentalizando-os, que preferem não cooperar com outras organizações em objetivos comuns, levando a cabo projetos redundantes, consumindo recursos de forma menos responsável ou servindo de plataformas de protagonismo. Há também movimentos de cidadania que promovem tudo o que considero distante do exercício de cidadania: discurso de ódio, intolerância, violência, xenofobia, homofobia ou outras formas de discriminação. Na minha opinião, a origem destas perversões deve-se em grande parte a uma lacuna: a falta de oportunidades efetivas de aprender cidadania democrática e direitos humanos. Porque, tal como a Matemática ou o Português, não é realista esperar que a cidadania se aprenda informalmente, fora dos espaços escolares. Nunca é demais referir que a Educação para a Cidadania e para os Direitos Humanos é, só por si, um Direito Humano.
A Escola Somos faz lembrar aqueles livros do Paul Auster em que as personagens deixam tudo para trás e lançam-se à aventura do que quer que venha a seguir.
A Escola Somos não resolve essas lacunas todas.
Sinto que a nível nacional estão a ser feitos esforços no sentido de efetivar a Educação para a Cidadania nos currículos de ensino, mas esta é uma transformação que precisará de tempo para se consolidar no sistema de ensino formal. Ora, as Escolas SOMOS, sendo locais e pontuais, permitem uma abordagem ad hoc. São criadas precisamente para ser a oportunidade de aprendizagem de cidadania e, como tal, mais facilmente se assegura esse mesmo resultado. Porque, para além de uma oportunidade de aprendizagem, também reúnem pessoas e organizações em espaços e processos comuns, estimulando a cooperação. As equipas, os grupos de participantes e as parcerias são feitas entre instituições locais, nacionais, organizações não-governamentais, a Academia, educadores freelance, professores, técnicos de instituições, voluntários, etc. Então a Escola SOMOS promove o encontro de pessoas que, geralmente, por um motivo ou por outro, não se encontram.
O que é que esta terceira edição traz de novo?
Depois das duas edições anteriores que tiveram lugar na Escola Superior de Educação em Benfica e no Agrupamento de Escolas de Alvalade, a terceira edição da Escola SOMOS é a acolhida no espaço histórico da Escola Secundária de Camões. É a maior de sempre, incluindo 6 formações intensivas que decorrem em paralelo durante uma semana, de 10 a 15 de julho, partilhada por cerca de 90 pessoas. Depois há novos parceiros, como a Casa Qui, a PAR – Respostas Sociais, o Centro de Vida Independente e a Sons da Lusofonia, que dá resposta às necessidades concretas de Lisboa. As Escolas SOMOS são cada vez mais da cidade.
Num tempo em que os sinais de participação cívica não são animadores (vejam-se as taxas de abstenção nas eleições), há uma maior urgência em projetos como este?
Sim. Mas não necessariamente porque as pessoas precisem de melhor perceber o seu papel como cidadãos eleitores. Há razões mais profundas para os números de abstenção que ocorrem em Portugal e, de resto, em grande parte das democracias europeias. Têm relação com os números do ceticismo dos cidadãos relativamente às instituições e aos sistemas de democracia representativa. Por outro lado, as instituições democráticas – enquanto instrumentos de promoção de estabilidade – não se transformam à velocidade que seria expectável transformarem-se. Por outras palavras, as instituições até sabem para onde devem ir, mas não conseguem. O problema da abstenção não se encontra apenas nas pessoas, mas também nas instituições, que não correspondem às suas expectativas. Portanto sim, a Escola SOMOS é uma iniciativa que vai ao encontro da urgência de reinventar uma democracia onde a participação cívica faça sentido para os seus cidadãos e onde a proximidade entre representados e representantes seja efetiva.
Temos na nossa história demonstrações inequívocas de capacidade de mobilização, como a luta estudantil de 1969, o 25 de Abril ou, mais recentemente, o protesto de 12 de Março de 2011.
Quais são as áreas críticas da cidadania no momento atual? O que pode fazer a Escola Somos por elas?
Para além da ausência de um sistema consolidado de educação para a cidadania, há questões que entendo merecerem reflexão com prioridade. Temos tido nos últimos anos várias oportunidades de observar consequências do populismo nas democracias, sendo exemplos paradigmáticos o ‘Brexit’ na União Europeia ou a eleição de Trump nos Estados Unidos. Está provado que o populismo ‘funciona’ nas democracias enquanto ferramenta de exercício ou de ascensão ao poder. O crescimento do discurso populista na Europa é preocupante, originando irracionalidade cidadã, tendências nacionalistas ou xenofobia. A Escola SOMOS estimula a reflexão crítica das pessoas; prioriza o desenvolvimento da sua inteligência cidadã. É um espaço onde se desconstroem as narrativas que nos instrumentalizam e onde se reconstrói o conceito de cidadania.
Como se carateriza, grosso modo, a sociedade portuguesa ao nível da participação cidadã?
Temos na nossa história demonstrações inequívocas de capacidade de mobilização, como a luta estudantil de 1969 ou o 25 de Abril. Mais recentemente, o protesto de 12 de Março de 2011 revela indicadores semelhantes, muito embora sinta que o seu impacto não tenha tido a dimensão que muitos desejavam. Talvez pudesse ter sido mais estratégico? Talvez pudesse ter sido mais realista? É uma reflexão que mantenho há uns anos. O que é certo é que constituiu uma importante afirmação do descontentamento da população em Portugal demonstrando que somos capazes de demonstrar indignação em coletivo. É uma ferramenta que temos e, para além disso, é de uma extraordinária beleza.
Quais são as áreas fundamentais em que o programa deste ano quer incidir?
Este ano centramo-nos nos direitos das pessoas com deficiência, nos direitos LGBTI e na identidade de género, tentamos misturar arte e participação cívica, sobretudo através da música e do teatro, refletimos sobre as melhores formas de produzir informação e fazê-la chegar aos cidadãos, e apostamos fortemente na educação para a Cidadania, seja entre pares, seja por métodos não formais.