O lá fora educa. Então, voltei a Paris e os prédios antigos continuaram a saltar-me aos olhos. Sim, sim, por cá também temos a Casa dos Bicos, a Torre dos Clérigos e há vilas que guardam o edifício da Câmara com mais de 100 anos. Mas em Paris são prédios comuns, quarteirões exclusivamente de casas com 100, 150 e mais anos, apesar da razia, a meados de 1800, também lá feita pelo barão Haussmann. Metade das casas de Paris de então desapareceram, mas com a maravilhosa compensação de se ter ficado com vontade de passar a guardar o resto e as que se seguiram. Nesta crónica, que é de passeio, o que importa é assinalar que uma revolução arquitetónica ajudou a guardar o pano de fundo. Escolhendo algumas evocações literárias vou tentar contar o que faz Paris ser uma festa para os olhos. E começo logo ali, onde Paris É Uma Festa em título famoso.
Da praça da Contrescarpe, para quem desce a rua Cardeal Lemoine, logo à esquerda, há um magote de gente, frente à porta azul, número 74, espreitando a janela do quarto andar. A partir de 1921, Ernest Hemingway viveu nesse apartamento com Hadley, a sua primeira mulher, e lá escreveu O Sol Nasce Sempre. Mais tarde, em Paris É Uma Festa, crónicas póstumas, ele descreveu com minúcia os dois quartos sem casa de banho (e só um «balde higiénico»). Quando faz bom tempo, é certa a presença de pequena multidão, como se confirma por uma litania de voz de velho, no prédio em frente. Ele está no segundo andar e talvez acamado, não pode ver o que se passa lá em baixo mas, confiante, abana uma garrafa de plástico agarrada por um cordel que chega ao passeio. Pede uma moedinha e vive do sucesso eterno de Hemingway.
Está confirmada a estada quase centenária do americano naquela rua e porta – e grande placa a assinalá-lo – mas outra informação vaga dele assim continua, vaga. Nas suas já citadas memórias de Paris, Hemingway diz que para escrever tranquilamente, alugara um quartinho, perto do apartamento onde vivia com Hadley, e que de forma imprecisa ele diz ter sido «num sexto ou oitavo andar, no prédio onde morreu Verlaine.»
O poeta francês morreu numa rua próxima, na rue Descartes, no 39, e lá está uma grande placa a assinalá-lo, no centro do edifício. Já de Hemingway, ali, a placa é pequenina e escondida. Mais revelador, o restaurante térreo chama-se «Maison de Verlaine » e em toda a rua não há nenhum estabelecimento com o nome do autor de Por Quem os Sinos Dobram. Tratando-se do escritor que mais turistas mobiliza, um tão pouco entusiasmo por se reclamar dele leva-nos a todas as dúvidas… Em Madrid cheguei a ver na montra de um restaurante esta ironia: «Hemingway nunca comeu aqui», truque de comerciante. Apesar de tudo, também se vai à rua Descartes olhar a lucarna da mansarda e imaginar Hemingway a celebrar o fim de um conto, comendo as castanhas assadas que trouxera no bolso do casaco. Se é que alguma vez ele entrou no prédio onde morreu Verlaine…
E dali partirmos para a também vizinha rua de Tournefort, passarmos pelas edições Chandeigne – que insistem em publicar sobre Portugal – e pararmos na porta 24. Balzac disse-nos que ali ficava a «pensão Vauquer» e lá hospedou o Père Goriot e o ambicioso Rastignac. O prédio é normal para Paris de hoje e de ontem, mas anteontem o personagem Goriot dizia «nenhum bairro de Paris é mais horrível, nem, digamos, mais desconhecido.» E a realidade diz que naquele número de porta existiu, mesmo, a pensão Crouzet, com esta tabuleta: «Pensão burguesa para os dois sexos e os outros».
A lição para nós é: não deitemos abaixo, deixem a pedra velha ficar e mil placas hão-de florescer nas nossas cidades. Então, até daqui a 150 anos…