Somos todos mentirosos (e ainda bem…)

Mentiras
Mentiras

Mentir é errado, dizemos. Porque magoa as outras pessoas, porque o benefício que causa é menor do que o dano que provoca, porque semeia a incerteza nas relações, porque a moral e a ética e o senso comum dizem que é errado. Será? Não mentir pode magoar mais do que faltar à verdade e, sejamos honestos: as relações sociais – todas elas – estariam condenadas sem a mentira. Por isso, e apesar desta ideia generalista de que mentir é errado, talvez, afinal, não seja assim tão errado. Ou, pelo menos, talvez não seja errado sempre.

Repare-se como é vasta a amplitude da mentira: se mentimos para enganar com intenção e tirar daí dividendos estamos perante uma «fraude»; se mentimos constantemente somos «aldrabões»; se não somos honestos para evitar magoar os outros chamamos-lhe «filtro social» ou «mentira piedosa»; quando mentimos a nós próprios chamamos-lhe «negação», se a mentira não prejudica ninguém chama-se uma «mentira branca», se uma criança mente dizemos que é a «imaginação» e uma mentira dita com fins maiores, humanitários, pode mesmo chamar-se coragem ou heroísmo.

Os estudos mostram que mentimos entre dez e duzentas vezes por dia, dependendo do perfil de cada um e, sobretudo, da quantidade de relações sociais e interações que temos. Fazemo-lo pelas mais variadas razões. Eis uma delas: da próxima vez que a sua mulher ou o seu marido lhe perguntar «estas calças fazem-me gorda/o?», experimente responder «sim, mas o problema não são as calças, é tudo o que comes». Ou da próxima vez que estiver maldisposto e cheio de problemas, experimente responder com sinceridade a toda a gente que lhe faz a costumeira pergunta: «Então, tudo bem?» Já deve ter percebido a ideia. Por isso, quem nunca mentiu que atire a primeira pedra.

Queremos honestidade, mas não sabemos lidar com ela e, quer queiramos quer não, há mentiras e mentiras. Talvez por isso, já Platão, 400 anos antes de Cristo, fazia uma distinção entre dois tipos delas, apontando a diferença entre a mentira que é utilizada para proteger alguém e a que é dita para prejudicar a outra pessoa. A do primeiro tipo, o filósofo classificava como «mentira altruísta», e nela cabe tudo aquilo a que hoje chamamos de mentira piedosa – a tal que nos faz e comentar «sim, está giro» em relação a um penteado que achamos pavoroso. Usamos este tipo de mentira para proteger os sentimentos dos outros e o objetivo é precisamente não magoar. A nós, a única vantagem que nos traz é não sermos apelidados de mal-educados. É difícil imaginar a vida sem estas mentiras inocentes, mas já alguém fez a experiência e conta como foi.

O jornalista alemão Jürgen Schmieder escreveu, em 2010, o livro Du sollst nicht lügen! (Não mentirás! – sem edição em português) a contar a sua experiência de 40 dias só a dizer a verdade. Schmieder defende no livro que muitas das mentiras que dizemos são dispensáveis e que a maioria das vezes poderíamos parar de mentir. Ainda assim – e por razões diplomáticas. É que durante o período em que não mentiu, os colegas de trabalho afastaram-se, discutiu com a mulher e passou sete noites a dormir no sofá, perdeu dinheiro e levou um murro do melhor amigo. E isso leva-o a concluir que nas relações a sinceridade deve ser aplicada em doses terapêuticas porque em excesso, em vez de curar, mata.

“Imoral e pouco saudável pode ser não enganar”, defende, no seu livro The Varnished Truth, o filósofo e pedagogo David Nyberg. “Sobrestima-se o valor moral de dizer a verdade”, escreve, “sem o engano as nossas relações seriam impossíveis. Para viver de forma digna uns como os outros não precisamos de pureza moral, precisamos de discernimento”. Mesmo no que toca a enganar-nos a nós próprios, o filósofo defende que é um mal necessário: para viver, precisamos da esperança que, muitas vezes, só o autoengano pode trazer-nos.

Nyberg está longe de estar sozinho nesta teoria. O sociólogo espanhol Ignacio Mendiola, autor do livro Elogio de la mentira, defende o mesmo e insurge-se contra a condenação moral de toda a mentira que nos impingiram. Em entrevista o jornal El País, em 2006, o autor defende que acabou por concluir que a mentira é importante na nossa vida; não é uma questão periférica, não é opcional e não é possível imaginar uma sociedade funcional sem ela. Mas atenção: estas teorias não são carta-branca para todas as mentiras. “A mentira que merece elogio é aquela que nos permite relacionarmo-nos com os outros”, explica o autor, “fora deste elogio à mentira estão as mentiras que fazem do outro um mero instrumento para se alcançar um objetivo”.

A capacidade de enganar não é exclusivamente humana. A natureza está cheia de exemplos de animais trapaçeiros que enganam em proveito próprio: peixes que se fingem de mortos para caçar as presas, aves que levantam as asas para parecerem maiores, primatas que guincham como se estivessem a ser atacados para conseguirem roubar alimento ou atrair fêmeas, répteis que colocam paus na boca para atraírem os pássaros. Não lhes podemos chamar propriamente mentiras, porque a palavra implica um tipo de consciência que os animais não têm, mas o mundo animal não é muito mais honesto do que o nosso.

E eis algo que não é surpreendente: quanto mais desenvolvido é o cérebro, mais apurada é a capacidade de mentir. Talvez o exemplo mais cómico disso seja o da gorila Koko, treinada em linguagem gestual, desde pequena, pela psicóloga animal Penny Patterson, sabendo hoje expressar mais de mil palavras. Koko sempre manifestou grande carinho por gatos, tornando-se conhecida pelas imagens em que embala e abraça um pequeno gatinho. Um dia, sem ninguém por perto, Koko arrancou um lavatório da parede no seu habitat. Quando os tratadores voltaram e lhe perguntaram quem tinha feito aquilo, Koko respondeu, em linguagem gestual: “Foi o gato”.

Claro que nem sempre a mentira se resume a uma forma de evitar problemas para nós ou para os outros. O jornalista e crítico cultural germano-americano H.L . Mencken dizia, com a ironia lhe era caraterística, que muitas vezes mentimos apenas porque a verdade é aborrecida. Ou seja, mentimos por puro tédio: perante uma realidade sem graça, a nossa cabeça opta por alguma coisa com mais sumo. Qualquer pescador sabe disto. É muito mais divertido contar uma história de pescaria que envolve uma luta com um peixe de 15 quilos do que descrever quatro entediantes horas sentado num barco que culminam na pesca de um peixe de 100 gramas.

Ou seja, mentimos – também – para preencher o fosso que existe entre aquilo que gostaríamos de ser e não somos, defende Pamela Meyer, autora do célebre livro Liespotting e especialista em fraudes. Por isso, na sua TED Talk «How to spot a liar» explica que tanto para percebermos como mais facilmente descambamos para a mentira, como para perceber em que é mais provável sermos enganados, temos de saber responder a esta pergunta: de que estamos sedentos? Queremos ser mais bem-sucedidos? Mais magros? Melhores companheiros? Melhores pescadores? Ter uma vida mais dinâmica? A mentira vai surgir com mais facilidade naquilo que sentimos estar em défice. E também vamos deixar que nos enganem naquilo que nos julgamos mais fracos. Porque a mentira, defende Pamela Meyer, é um ato cooperativo. “Uma mentira não tem qualquer poder com a sua simples expressão. O seu poder emerge quando outra pessoa concorda em acreditar na mentira”, defende a autora de Liespotting. Muitas vezes, “se a dada altura vos mentem, é porque concordaram que vos mentissem”. Sejamos honestos: ninguém quer que lhe respondam que o penteado que usa é feio, que está gordo ou que fez um mau trabalho.

Mas não queremos só ser enganados, também nos enganarmos a nós próprios com uma perna às costas. Para quê? A maioria dos investigadores defende que é apenas para vivermos mais felizes e chamam a esse mecanismo «ilusões positivas». Outros, como o biólogo norte-americano Robert Trivers, têm uma teoria menos otimista sobre o autoengano. Para ele, e de acordo com seu livro The Folly of Fools, mentirmos a nós próprios serve sobretudo para enganar os outros de forma mais eficaz: é uma estratégia de ataque e não de defesa.

Certa, errada, inócua, prejudicial, esporádica ou sistemática, a mentira é uma constante na nossa vida. E negar que a dizemos é apenas dizer mais uma.

MAIS DEPRESSA SE APANHA UM MENTIROSO DO QUE UM COXO?

Com muita pena nossa (ou alívio?) o efeito Pinóquio não existe. Somos melhores a mentir do que a detetar a mentira dos outros. As nossas hipóteses de o fazer corretamente – de acordo com um estudo da psicóloga americana Bella DePaulo – rondam os 54 por cento. Já um detetor de mentiras (polígrafo), de acordo com um relatório da Academia Nacional de Ciências norte-americana, também não é infalível, mas anda entre os 89 e os 95 por cento de precisão, razão pela qual continua a ser usado pela polícia e outras agências de segurança.

Depois há ainda os detetores de mentiras humanos, pessoas que, devidamente treinadas para o efeito, têm a capacidade de detetar um conjunto de sinais que apontam para a mentira ou para a verdade. Estes clusters de sinais incluem a comunicação verbal, as microexpressões faciais e a linguagem corporal. O mais famoso detetor de mentiras humano e pai das microexpressões é o psicólogo americano, especialista em emoções e expressões, Paul Ekman. O psicólogo conduz formações sobre deteção de mentiras para organizações como o FBI, CIA, Departamento de Defesa e Polícia de Nova Iorque e empresas. A popular série de televisão Lie to Me é baseada no seu trabalho e teve o especialista como consultor científico.

ELES VERSUS ELAS

Os homens mentem mais do que as mulheres, diz um inquérito realizado, em 2012, no Reino Unido, pela empresa de estudos de mercado One Poll, depois de entrevistar 3000 adultos. O estudo – encomendado pelo Museu da Ciência britânico – conclui que as mentiras mais frequentes também são diferentes. O top 10 das mentiras de cada sexo para os seus parceiros é este:

HOMENS
1. Não bebi assim tanto.
2. Não se passa nada, estou ótimo.
3. Não tinha rede no telemóvel.
4. Não foi assim tão caro.
5. Estou a caminho.
6. Estou preso no trânsito.
7. Não, o teu rabo não está assim tão grande.
8. Desculpa, não vi a chamada.
9. Sim, perdeste peso.
10. É mesmo aquilo que eu queria.

MULHERES

1. Não se passa nada, estou ótima.
2. Não sei onde está, não lhe mexi.
3. Não foi assim tão caro.
4. Não bebi assim tanto.
5. Estou com dor de cabeça.
6. Estava em saldos.
7. Estou a caminho.
8. Já tenho isto há séculos.
9. Não, não deitei fora.
10. É mesmo aquilo que eu queria.