Ao visitar o estúdio de Miró, nas Baleares, retive algumas ideias sobre a transcendência no quotidiano que me foram passadas pelo neto do pintor. Para além de um gato embalsamado e que está pendurado numa parede, um hemisfério completamente gato, outro completamente liso (por causa da tal parede), há uma incidência em objectos do dia-a-dia, quase como que uma devoção ao presente, àquilo que tomamos nas mãos com frequência e com frequência não damos valor. Nas mãos de Miró são arte.
Os seus quadros suicidam-se, entrevendo uma nova vida, uma nova maneira de ser. Nesse aspeto quase que nos explicam a morte e a sua necessidade: dar lugar a algo acima de nós, novo, como se fôssemos um degrau. O neto de Miró apontava para a tinta no chão e dizia ser sangue, a prova do crime, de constantemente desfazer a arte e, das ruínas daquilo que foi construído, pintar uma nova realidade.
Um dia, Miró colocou umas gravuras a secar. Os cães comeram uma parte, pois tinham sido feitas com leite condensado. Ao ver o resultado, pensou nessa coisa incrível, ou óbvia, que é considerar o acaso, e também a animalidade, como fatores possíveis de criação. Miró ficou contente com o trabalho dos cães.
Uma das coisas mais fascinantes da arte é a possibilidade de diálogo. A visão de Van Gogh não é a verdade, é uma perspetiva, tal como a de Rembrandt. Não estão certas como dois mais dois serem quatro, não se colocam no lugar da Verdade. Não dizemos que Picasso tinha razão e Fídias estava errado. Mostram uma perspetiva, um dia, um ângulo, um estímulo. A verdade provoca uma devastação global e anula o diálogo e a sua possibilidade. Cada vez que aparece uma verdade, desaparece a esperança. Não adianta discutir, estamos perante a realidade. Acabaram os argumentos. Vonnegut expõe isso claramente:
«Pensava que os cientistas acabariam por explicar como tudo funciona, e tudo fosse melhor. Esperava verdadeiramente que, quando tivesse 21 anos, um cientista, talvez o meu irmão, tirasse uma fotografia a cores de Deus todo-poderoso e a vendesse à revista Popular Mechanics. A verdade científica iria fazer- nos felizes. O que aconteceu, na verdade, é que, quando eu tinha 21 anos, eles lançaram a verdade científica sobre Hiroxima.»
(Ilustração feita pelo autor)
[Publicado originalmente na edição de 22 de maio de 2016]