A resina voltou a ter procura. Os produtores nacionais estão a voltar a investir nesta matéria-prima, da qual Portugal já foi o maior exportador da Europa e o segundo maior do mundo. Os antigos resineiros voltaram ao ativo. E os pinheiros portugueses voltam a sangrar.
Quando Emília Domingues partiu para a Suíça, sabia que, mais cedo ou mais tarde, a resina voltaria a fazer parte da sua vida. Com a quarta classe e uma mala a tiracolo, tinha uma certeza e um sonho: queria ser mãe solteira e juntar dinheiro para construir uma vivenda em Portugal. Com 17 anos e uma personalidade que chocava com a do pai, homem de velhos costumes, Emília era o oposto das mulheres da época. Estávamos em 1985. «As minhas amigas queriam casar de véu e grinalda. Eu não. Eu desejava ser mãe, mas não queria depender de nenhum homem.»
Emília fala enquanto recolhe resina num pinhal na zona industrial da Guia, arredores de Leiria. Começou a trabalhar aos 13 anos, depois de uma infância complicada. «Precisava de conhecer mundo. Não queria uma vida de sofrimento, como a minha mãe.» Na Suíça trabalhou num restaurante e como empregada doméstica. Dias e noites sem descansar durante oito anos. Só pensava na vivenda dos sonhos, ao mesmo tempo que não se conseguia libertar do odor a resina. «Que saudades eu tinha deste cheiro! É das coisas de que mais sentia falta.» Oito anos depois voltou com um filho no ventre e o dinheiro suficiente para a casa dos seus sonhos. «Foi difícil para o meu pai aceitar, mas não abdiquei de ser mãe solteira. O meu namorado tinha a casa dele, eu a minha.»
Mulher de armas, começou a trabalhar na indústria madeireira. Mais tarde trocou as florestas pelo interior de uma fábrica de louças. Há cinco anos, o destino levou-a novamente à resina.
«Se continuasse na fábrica entrava em paranoia. Aqui é que eu me sinto feliz, no meio da natureza. Voltei a sentir-me humana e não uma máquina.»
Tal como Emília, muitos resineiros optaram nos últimos anos por voltar ao trabalho que marcou várias gerações na zona centro do país. No final dos anos 1980 a profissão parecia em vias de extinção, culpa da forte concorrência estrangeira.
«Era incomportável para os produtores portugueses concorrer com os baixos preços de países como a China», diz Hilário Costa, presidente da Resipinus, Associação de Destiladores e Exploradores de Resina. «A China produzia muito, mas começou a esgotar os recursos. Neste momento a produção intensiva do Brasil também começa a estar em causa, ao invés de Portugal. Existe um grande potencial de crescimento do setor. Além disso, assistiu-se nessa altura a uma viragem na plantação de eucaliptos em detrimento dos pinheiros bravos. Muitas fábricas fecharam e os trabalhadores forçados a procurar atividades como a construção civil.»
Quem nunca abdicou da profissão foi Licínio Caldeira. Começou aos 14 anos, hoje tem 66 e nunca quis outra vida, mesmo quando uma proposta tentadora de trabalho numa fábrica o fez pensar duas vezes. «Hoje teria uma reforma de rico, como muitos amigos que escolheram esse caminho», diz com tristeza. «Aqui andamos sempre sujos, não é um trabalho fácil. No Inverno andamos ao frio e à chuva; no verão começamos a trabalhar às seis da manhã, que isto com o calor torna-se impossível a partir do meio-dia. Mas não trocava isto por nada.» Todos os dias, Licínio tem a missão de renovar a casca de 900 árvores de um pinhal particular, cujo proprietário recebe um valor anual para autorizar a exploração resineira. O número não é um exagero. A floresta é densa, um labirinto que só a sua experiência consegue desvendar, mas Licínio não perde mais de 15 segundos em cada árvore. Primeiro raspa a ferida do pinheiro, depois besunta-a com ácido sulfúrico, para acelerar a produção de resina. «Aqui é tudo manual, não há cá máquinas. Por isso é que nunca quis ir para uma fábrica, fechar-me numa prisão. Aqui ando livre, solto, feliz.»
Às dez da manhã, o apito estridente de uma unidade fabril nas proximidades indica que é hora da bucha. Os resineiros cumprem a mesma pausa dos colegas fabris, mas num ambiente diferente. Paulo Costa, 45 anos, barriga proeminente e sentido de humor refinado, estica as pernas sentado junto a um pinheiro. Da mala retira uma navalha, pão e um pedaço de carne. Vai bebendo vinho tinto de uma garrafa de plástico e, com as costas da mão, limpa a boca. «A escola não era para mim, sempre foi isto que quis fazer desde os 13 anos. Veja lá você que andei sete anos na primeira classe e não aprendi a ler e a escrever!» Os colegas não conseguem evitar as gargalhadas. Já ouviram a história várias vezes, mas Paulo nunca se livra da chacota. «Há sete anos a junta de freguesia obrigou-me a frequentar aulas para adultos. Já me desenrasco com as letras, pelo menos já sei assinar o meu nome.» O toque na fábrica ouve-se de novo, hora de voltar ao trabalho. Menos para Paulo, que continua a descascar uma laranja perante a impaciência do patrão. «Depois fazemos contas!», ameaça.
Depois das lucrativas décadas de 60, 70 e 80 do século passado, em que Portugal foi um dos líderes mundiais de resina com uma produção média anual de 140 mil toneladas, o setor volta a despertar interesse para os produtores nacionais depois de anos de estagnação.
A profissão de resineiro era até encarada como em vias de extinção. Hoje a indústria nacional produz cerca de oito mil toneladas por ano, apenas dez por cento das necessidades do mercado. A maior parte das importações vem do Brasil, explica Licínio Caldeira. «A diferença é que lá o Estado oferece as matas aos resineiros para exploração, o que desde logo baixa significativamente o preço final. Só assim conseguem chegar cá com a resina a um preço mais baixo. Mas eu não trocava um quilo da nossa resina por dois da brasileira.»
Emília não tem mãos a medir: a avaliar pela velocidade com que despeja a resina dos púcaros, o valor total da «jorna» vai ser lucrativo. Por cada balde de vinte litros que encher recebe 2,80 euros – por dia conseguem encher uns 13 a 15 baldes. O patrão não a troca por nenhum dos homens que também deambulam pela mata. «As mulheres fazem a recolha muito mais rápido do que nós», explica Licínio. «E ao contrário de nós, acabam o trabalho a rir.» Longe vão os tempos em que o trabalho de resineiro era apenas associado aos homens. «Hoje em dia não lhes vimos apenas trazer o farnel, fazemos isto tão bem quanto eles», diz Fátima Pedrosa, de 42 anos. Tal como Emília, também se cansou de trabalhar numa fábrica, onde nem falar podia. «Aquilo é uma tortura, estava quase a ficar maluca. Se dissesse alguma coisa à minha colega do lado, vinham logo repreender-nos.» No pinhal voltou a ser feliz, de regresso ao trabalho que aprendeu em criança. «Aqui posso falar, dizer umas parvoíces, estou no meio da natureza. É um trabalho duro, mas sinto-me livre como um passarinho.» Emília acaba de encher mais um balde, o segundo em poucos minutos. Para o despejar precisará dos braços de um homem, mas nenhum lhe nega ajuda. «Não tenho razões de queixa, se bem que você sabe como é, os homens tentam sempre abusar. De vez em quando tenho de pôr um travão», conta entre sorrisos.
«O setor está em franca progressão », diz Alcino Pereira, diretor da Vieirifabril, em Vieirinhos, distrito de Leiria.
«A resina tem cada vez mais procura não só em Portugal como lá fora. Além disso, contribui para a limpeza e preservação da floresta. Onde há um resineiro, é como se estivesse um guarda-florestal.» A produção da fábrica não tem mãos a medir: quanto mais resina lhes chegar, mais a empresa consegue responder às exigências do mercado. «Exportamos oitenta por cento do que fabricamos, apenas com sete trabalhadores.» Um dos principais clientes é a marca francesa de pneus Michelin. «Poucas pessoas sabem, mas a resina pode ser utilizada em mil e uma coisas.»
José Rosa, de 59 anos, é um dos trabalhadores da Vieirifabril. No fim de mais um dia de trabalho, tenta libertar-se da resina nas mãos e braços antes de partir para casa, onde ainda vai «cuidar do gado e de uma pequena horta». Mas é impossível: a resina está-lhe colada como uma segunda pele. Há várias gerações que a família se dedica a esta atividade. «Pais, avós, bisavós, tios, todos foram resineiros», diz. Começou com 10 anos a seguir as pisadas do pai, com quem aprendeu tudo o que sabe do ofício. Até que um dia decidiu trocar a vida dura nos pinhais pela incerteza de uma vida nova no estrangeiro. «Na Suíça trabalhei na agricultura e em matadouros, a matar e desossar perus. Demorava menos de um minuto, pode escrever aí», conta enquanto lava as mãos com sabão azul e branco. Dez anos mais tarde o apelo da terra natal foi mais forte. A resina voltou a chamar por ele. «Isto está-nos no sangue, não há volta a dar.» Há 16 anos teve o convite para trabalhar na fábrica e nem pensou duas vezes. «É verdade que na floresta não levamos com estes vapores da destilação, é só ar puro, mas já não volto a ser resineiro. Aqui não chove, não faz vento nem um calor de morte. Daqui vou para a reforma e acabou.»
Foi Alcino Pereira quem desafiou o antigo resineiro a trocar os pinhais pela transformação da resina em fábrica. Aos 74 anos, sabe que há uma altura para tudo. Até para a mudança de mentalidades. «Felizmente hoje assiste-se a uma transformação na floresta portuguesa. No final dos anos 1990 os proprietários das matas só queriam plantar eucalipto, convencidos de que tinham descoberto a fórmula mágica. Enganaram-se. A riqueza maior está no pinho, como se pode constatar. A produção de resina não é coisa do passado», diz o diretor da Vieirifabril.
A poucos quilómetros dali, Emília Domingues regressa a casa, tentando também retirar da pele a seiva pegajosa. Não há um dia em que não se lembre de todos os sacrifícios que teve de fazer para construir a vivenda dos seus sonhos, onde vive com os dois filhos. Não casou com o pai do primeiro filho, foi mãe solteira como sempre tinha imaginado, mas «ele era um rapaz muito bonito e tinha mais mulheres além de mim». Um dia acabou, não foram felizes para sempre. Anos mais tarde casou com o pai do segundo filho. «A maior asneira da minha vida, sete anos de inferno. Logo eu, que sempre disse que nunca me casaria.» Nova separação, novo recomeço de vida. Emília voltou a conquistar a alegria de viver e o sorriso fácil. «Agora é que eu estou bem, sozinha com os meus filhos. Tenho a minha vivenda, o meu carro e voltei à resinagem. É tudo o que preciso para ser feliz.»
OS EUROS E AS TONELADAS
Alguns especialistas defendem que esta matéria-prima pode substituir o petróleo de forma mais amiga do ambiente. Cada pinheiro dá em média dois a quatro quilos de resina por ano. Os seus usos vão desde a alimentação à indústria farmacêutica. Pastilhas elásticas, gomas, refrigerantes, perfumes, colas, pneus, tubagens, calçado, revestimento de roupas, vernizes, implantes ósseos, cremes protetores, pulseiras de relógios, capacetes desegurança, lentes oculares… quase tudo o que a imaginação e a indústria permitirem. Nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado Portugal chegava a produzir anualmente cerca de 140 mil toneladas. Hoje em dia o número caiu para oito mil toneladas anuais – oitenta por cento das quais são exportadas. A atividade envolve 750 pessoas, que trabalham para 11 empresas, e movimenta cerca de 265 milhões de euros por ano.