O coelhinho, o Pai Natal e o palhaço perderam o comboio para o circo

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«E depois?», perguntou a neta. «Depois, estava o peixinho, veio o gato, e comeu-o», respondeu o avô, ao mesmo tempo que provava um peixe de chocolate. «Mas veio o cão e o gato teve de se esconder», e uma felina dentada no cacau. «Depois, veio o coelhinho…» E aí a criança interrompeu em protesto: «Não, não, o coelhinho veio com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo.» Este diálogo marcou os anos oitenta. A publicidade televisiva às Fantasias de Natal, figuras de chocolate embrulhadas em papel colorido, era quase profético. Se o cheiro das sardinhas avançava a chegada do verão, se os vendedores de castanhas eram sinal inegável do outono, aquela conversa intergeracional que passava nos intervalos dos programas era o anúncio de dias frios, luzes no pinheiro e lareira acesa.

Tenho sérias dúvidas que o coelhinho, o Pai Natal e o palhaço conseguissem hoje apanhar o comboio para o circo. Por um motivo simples: não compraram o bilhete com antecedência. Pode parecer brincadeira, mas o assunto é na verdade dramático para milhares de portugueses que planeiam usar a rede de transportes na época natalícia. Quem viaja por estes dias nas linhas ferroviárias sabe que é cada vez mais difícil adquirir na hora bilhetes para viagens de longo curso. Sobretudo quem quer viajar de Alfa Pendular, o serviço mais rápido e confortável que a CP oferece. Se um passageiro chegar às duas da tarde à bilheteira de Campanhã, ou de Santa Apolónia, e tentar comprar o ingresso para o rápido das quatro, as probabilidades de não ter lugar são quase certas.

Às sextas-feiras e aos domingos, o drama normalmente adensa-se. Se for ponte, é uma tragédia. Há mais gente a querer viajar, mas os comboios são os mesmos e a maioria dos bilhetes já foram vendidos. Quando a TAP abriu a ponte aérea Porto-Lisboa-Faro, a CP lançou uma campanha de descontos com viagens baratas para responder à concorrência. Os passageiros que reservassem lugares semanas antes pagavam menos. E a procura foi tanta que, neste verão, os comboios andavam quase sempre à pinha. Adquirir uma viagem no dia passou a revelar-se tarefa quase impossível. Não faz sentido. A maior vantagem que os comboios podem oferecer, face aos aviões, é precisamente a facilidade de acesso. Um bilhete de avião é hoje mais barato, mas obriga a planeamento. O de comboio deveria permitir a rapidez de entrada no meio de transporte.

O planeamento que a CP obriga hoje os passageiros a fazer não é correspondido. Por exemplo, não é difícil prever que no dia 23 de dezembro, que este ano calha a uma sexta-feira, haja uma procura de comboios superior ao normal. No entanto, não há praticamente reforço no número de composições. Entre Lisboa e Faro circularão apenas dois Alfas e três Intercidades, os mesmos que percorrem a linha do Sul todos os dias. Entre a capital e o Porto, a empresa acrescentou um Intercidades aos oito que circulam diariamente, e não faz qualquer reforço aos 11 Alfas diários. Não é difícil adivinhar a confusão dos próximos dias. Nem é difícil prever que haja muita gente a perder o comboio este Natal. Às vezes um comboio perdido pode ser uma tragédia pessoal irremediável. Aos passageiros restam poucas alternativas senão esperar, pacientemente, por um serviço que não é propriamente barato. Melhor sorte parecem ter um coelhinho, um Pai Natal e um palhaço de chocolate. Esses sim, conseguiram chegar de comboio ao circo.