1993. Em Lisboa, começa a ser construída a Expo’98, que daria um prejuízo de mais de 500 milhões de euros, e é inaugurado o Centro Cultural de Belém com uma fatura de 200 milhões. No mesmo ano, em Paredes de Coura, um grupo de amigos põe a vila no mapa, com apenas 900 euros. Nascia a Meca da música indie. Numa semana, dá emprego a 1600 pessoas e movimenta três milhões de euros.
O mundo é um lugar estranho, sabemos todos. Em 1993, Bill Clinton chega ao poder nos Estados Unidos pondo fim ao longo reinado republicano do pai Bush. Nelson Mandela, símbolo da luta contra o apartheid, ganha o Nobel da Paz, mas Xanana Gusmão, um dos principais ativistas pela independência de Timor, é condenado a prisão perpétua.
Em Portugal, Mário Soares percorre alegremente o país com as suas presidências abertas. E Cavaco Silva cavalga a segunda maioria absoluta enquanto atapeta o país com alcatrão à boleia do primeiro Quadro Comunitário de Apoio, quase 15 mil milhões de euros vindos da Europa de uma assentada.
Mito ou realidade, há quem garanta que em 1993 é o ano em que, pela primeira vez, são vendidos mais computadores do que automóveis. Na música, explode o movimento grunge. Os Nirvana lançam o álbum In Utero, cinco vezes platina, 15 milhões de discos vendidos no mundo, quando o mundo ainda comprava discos. Ao mesmo tempo, popularizam-se as boy e as girl bands. Do Reino Unido, as Spice Girls, e da Florida, os Backstreet Boys, são exemplos de que não é preciso saber cantar, só dançar de forma sincronizada para ascender ao topo. Em Portugal, os Blind Zero e os Cosmic City Blues preenchem a quota grunge.
Em Lisboa, arrancam as obras para a Expo’98, evento que prometeu pagar-se a si próprio mas que haveria de registar um prejuízo de 565 milhões de euros. É inaugurado o Centro Cultural de Belém, cuja fatura ultrapassaria os 200 milhões de euros, duzentas vezes mais do que o previsto. Nesse ano, a capital é também palco da estreia nacional de Prince. No Porto, a música de estádio é outra. A honra é fornecida pelo Futebol Clube de Porto, que volta ser campeão nacional. Pela 13ª vez.
Enquanto a história dos homens mudava nas suas imensas gravidades, numa tranquila vila minhota o mundo não se preparava para mudar. Mas a história de muitas vidas sim. E isso não sabíamos todos. Onde era Paredes de Coura em 1993?
Meca do indie
Paredes de Coura, no Alto Minho, parente pobre dos concelhos ricos de Viana do Castelo, não era em lado nenhum, porque ninguém sabia onde era. Mas era lá que, nesse ano, nascia o festival que haveria de mudar a forma como se recebe e ouve música. E a forma como quem ouve música guarda concertos ao vivo: como se o mundo já pudesse acabar. Nascia um fenómeno de partilha, de cruzamento de pessoas, de crescimento de oportunidades, um medicamento natural para a dor. Coura era periferia e fragilidade, onde se nascia para sair ou sofrer. Hoje, é trilho terapêutico, lugar mítico e místico que salva, onde todos querem ir e onde se vai para se ser feliz. E para aprender que a generosidade e a gratidão são uma espécie de acrobacia temperamental revolucionária que pode durar e mudar o ano inteiro. Até ser Coura outra vez. Em 1993, era ainda apenas o embrião da explosão criativa e económica – e sim, sentimentalmente sísmica – em que depois se tornou.
Sem derrapagem orçamental, com 900 euros, em apenas nove dias, duas mãos cheias de rapazes, amigos com 20 anos, esboçaram o que viria a tornar-se, 23 anos depois do parto, e todos os anos ininterruptamente, a meca da música indie no país.
Numa semana, o festival dá emprego a 1600 pessoas e contrata 70 empresas. No multibanco, são levantados três milhões de euros. É impossível alugar casa ou quarto em cima da hora. Na colina mágica do campismo há quem consagre a tenda ao Taboão quinze dias antes daqueles cinco dias de efervescência. Para assegurar os melhores mergulhos na praia fluvial, a melhor sombra do jazz na relva, ou o melhor cenário para o romance, privilégio de quem ali sente que a música dá a oportunidade rara de ser sempre a primeira vez outra vez, outra vez no lugar certo. Dos restaurantes aos cafés, passando pelas mercearias e pelas ruas da vila, tudo é fila, gente em hipérbole civilizada, simples e alegre. Todos ganham, já ninguém estranha. São mais de vinte mil a dormir na vila, transfusão de milagre que devolveu a esperança a quem nasceu na opacidade de um país centralizado.
Foi de Paredes de Coura, que o país aprendeu a situar no mapa, e do núcleo fundador-consumidor desse festival criado num anfiteatro natural único, com relva ao pescoço do palco e rio ao fundo do corpo, criado «por brincadeira, por alternativa, para fazer mexer a terra, para entreter o tempo e porque sim», que saiu o atual presidente da Câmara Municipal da vila, Vítor Paulo Pereira, eleito pelo PS em 2013. E o ex-deputado do PSD e ex-secretário de Estado do Ambiente José Eduardo Martins. Que saiu o cientista reconhecido pela investigação desenvolvida na deteção precoce do cancro, hoje ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. E o irmão, João Brandão Rodrigues, o mais conhecido veterinário do país especializado em saúde oral de burros. Que saiu Carlos Loureiro, engenheiro com império de empresas de construção civil em Angola. E Nuno Ferros, diretor do Canal 180, o primeiro canal português por cabo inteiramente dedicado à cultura. Que saiu Afonso Barbosa, diretor executivo da Seat-Wish, empresa de troca e venda de bilhetes de espetáculos e jogos de futebol sediada na Califórnia. Assim como os três mentores resistentes, os empresários e sócios-fundadores da Ritmos, empresa responsável pelo Festival de Paredes de Coura: João Carvalho, ex-locutor de rádio, José Barreiro, ex-sociólogo e Filipe Lopes, gestor.
Entraram nos 40 anos como entraram nos 20, amigos de infância a relativizar a vida adulta, unidos no abraço de fazer pela terra, por Coura, território onde voltam sempre. E nenhum deles, asseguram todos, voltaria se não fosse a catedral de orgulho em que se transformou o festival.
O que é que Coura tem?
«Coura era a típica terra pobre de emigrantes e sem oportunidades. Não tinha praia, nem casas solarengas, nem sarrabulho, como os outros concelhos de Viana. Tinha pouco mais de cinco mil pessoas e era o concelho mais gozado do Alto Minho. Coura era uma seca!», diz José Eduardo Martins, melómano e sócio da Abreu Advogados, uma das maiores sociedades de advogados do país. Lisboeta de residência, alentejano por arrebatamento, mas courense de gema, o ex-dirigente social-democrata passava sempre ali o verão, no berço bucólico dos pais – e não gostava. O aparecimento do festival, de que hoje é sócio, mudou-lhe a perspetiva. «Adoro o Alentejo. Mas se tiver de definir-me, é a Coura que pertenço. É aquela paisagem que me tranquiliza a alma, é ali que me sinto em casa.» A casa é a vila inteira, mas é também a casa dos pais, que se «transforma num prolongamento do recinto, para o ritual de receber os netos e os amigos».
É ali que Carlos Loureiro, «o milionário do grupo que era forreta na juventude», sonha construir casa para todos. «A ideia de vivermos a velhice na mesma casa parece brincadeira, mas não é. Gostava que acabássemos assim, todos juntos», confessa.
O tiro de partida será dado no próximo ano, quando arrancarem as obras do hotel de charme que o empresário vai construir no concelho, hoje com 16 freguesias e quase dez mil habitantes. «Vivo em Angola desde 2003. Acabei por construir a minha habitação em Espanha, mas não é lá a minha pátria. O meu sítio é Coura, é o sítio que quero ajudar a crescer.» E já ajuda. Tem quase quinhentos funcionários e dois critérios de seleção: a geografia e o caráter. «A minha prioridade é recrutar em Coura, depois no Norte e só depois no resto do país. E o principal talento tem de ser a confiança.» É esse o traço que define os courenses, diz. «São pessoas confiáveis, sérias, que agarram as oportunidades com capacidade de trabalho. Tenho muito orgulho em todas as pessoas que contratei.»
Orgulho é o substantivo mais usado por todos para se referirem a Paredes de Coura, ao lugar que a vila ganhou no mapa, ao percurso profissional de cada um e à impressão digital que cada um deixou ali. «Fico embevecido de orgulho quando penso no que o meu grupo de amigos de criança conseguiu fazer com o festival. Mais do que fazer, manter. E sempre de forma simples e genuína», diz Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação, que é ministro porque há dois anos conheceu António Costa no recinto do festival. «Não é mito, é verdade. Foi lá que falei com ele pela primeira vez», confirma Brandão Rodrigues, ao telefone, do Brasil olímpico, na véspera de ser assaltado. «Fiquei surpreendido, porque ele já conhecia o meu trabalho científico. Tivemos uma conversa curta, que depois instigou conversas maiores.»
Em 2014, Costa ganharia as primárias no PS, seria nomeado primeiro-ministro e haveria de convencer o cientista a trocar Cambridge, onde fazia investigação há seis anos, por Lisboa. Mas todos os anos, em agosto, o ministro troca Lisboa, ou onde quer que esteja – oito cidades como residência, 16 anos de estrangeiro – por Coura. «Em 1998, estava a trabalhar na Expo, como voluntário. Tinha 21 anos. Trabalhei semanas seguidas, acumulando as folgas para poder ir ao festival. Fui e voltei de autocarro.»
Tiago foi «positivamente contaminado» por duas entidades na vida: o pai, «o maior melómano» que conheceu. E Coura. «Mais do que o festival, marcaram-me as pessoas, esse caldo de cultivo de fazer que são. Ainda hoje.»
Arriscar está nos genes daquela geração que diz de si própria resultar de uma «fornada dourada». «O que era mais bonito para nós era mais feio para o negócio, porque confundíamos emoção com dinheiro», reconhece Vitor Paulo Pereira, o homem que abandonou a organização do evento para assumir a presidência da autarquia.
«Tínhamos reuniões até de madrugada, para escolhermos as bandas. Às vezes, pensávamos: é muito caro, vamos enterrar-nos. Mas depois decidíamos fazer na mesma, porque o importante era oferecer noites bonitas às pessoas.» O antigo professor de História recorda a lógica e ri. E depois conta o que mudou. «Casámos.» E volta a rir. «Quando somos solteiros, somos imortais. Quando a família cresce, ganhamos sensatez.»
Não foi só a empresa do festival que beneficiou com a maturidade, foi também a autarquia. «Aprendi mais no festival do que na Universidade de Coimbra. Aprendi a gerir orçamentos, a tratar as pessoas todas por igual, as mais simpáticas e as mais difíceis, a dar atenção a todos os pormenores e a ter a responsabilidade de que nada pode falhar.»
Vitor Paulo fala como político, mas garante que a política foi um acaso. «A vida é feita de incerteza, de acaso, de luta. Não vale a pena achar que houve sempre razão atrás de cada decisão. Nunca pensei numa carreira política, como nunca pensei se iria haver festival no ano seguinte. Mas sempre pensei que a coisa mais maravilhosa que o festival deu às pessoas foi autoestima.»
«E mundo», acrescenta José Barreiro. Estudou Sociologia em Évora, mas também trocou o emprego na autarquia de Valença pela dedicação integral ao festival. Nunca foi groupie nem teve heróis, garante. Na juventude, gostava até mais de literatura do que de música – ler o Guerra e Paz, de Tolstoi, aos 18 anos não é para todos –, mesmo se não prescindia dos discos que a tia lhe enviava da América embrulhados em papel de novidade. Responsável pela produção, sentiu o primeiro arrepio em 2005, na edição que teve um dos cartazes mais generosos de sempre. «Vi os Arcade Fire, pela primeira vez, em outubro de 2004, quando vivia em Londres. O concerto foi num clube manhoso em que não estavam mais de duzentas pessoas. Em janeiro do ano seguinte, ainda em Londres, voltei a vê-los. Já havia três mil pessoas na sala. Vi-os ainda no Primavera Sound de Barcelona. E em agosto desse mesmo ano, os Arcade Fire tocaram na minha terra», enaltece. A multipremiada banda do Canadá custou vinte mil euros, hoje cobra perto de um milhão.
«Não sei se as pessoas perceberam, mas naquele ano ficou claro que o que acontece em Coura pode acontecer num clube de Nova Iorque», diz. A edição de 2005 foi aquela que qualquer festivaleiro gravou no coração, o ano de Nick Cave e dos Pixies, dos National e dos Queens of the Stone Age e dos Foo Fighters. O ano de Vincent Gallo, de papel na mão a seduzir: «Estou no quarto 308, se alguém estiver interessado.»
O ator de The Brown Bunny não sabe, mas, nesse ano, estragou a noite ao rosto mais popular da organização do festival. «Estava a tirar uma fotografia com a Juliette Lewis, ex-namorada de Brad Pitt. Ele passa, dá-lhe uma palmada no rabo e pergunta: “Queres dormir comigo hoje?” (pergunta reproduzida em versão soft). A atriz respondeu: Talvez», lembra João Carvalho, perdido na gargalhada da memória.
«Coura é amor»
João é único elemento que, desde o início, desde os tempos em que criaram a associação ICC (Incentivo à Cultura Courense, numa tradução polida), vive do festival e para o festival. Sabe os cartazes das 24 edições de cor, e é capaz de identificar trechos de notícias publicadas sem recurso a apontamentos. Como em 2004, quando o festival quase acabou depois da chuva torrencial que estragou o palco, aluiu o terreno e levou ao cancelamento de concertos. «Nessa noite, quase não dormi. Quando acordei, os jornais diziam que tinha sido a maior noite de chuva em Coura dos últimos 99 anos.» Mas ele vê sempre o copo meio cheio. «Não tínhamos patrocinador, tivemos um prejuízo brutal. Só tínhamos duas soluções: desistir ou arriscar tudo.» Arriscaram, hipotecaram as casas, ganharam. «Ficámos mais fortes e o festival mais resistente. Acabar deixou de ser opção.»
Carvalho cresceu a ler Miguel Esteves Cardoso n’O Independente e a passar música alternativa na rádio de Cerveira, até ao dia em que o patrão começou a descontar-lhe os períodos no salário. «Estava sempre ao telefone a contratar bandas», conta. Acabou por despedir-se. Mais tarde passaria ainda pela Assembleia Municipal, deputado pelo PS. Era lá que encontrava José Eduardo Martins, deputado pelo PSD. «As pessoas ficavam muito zangadas porque achavam que estávamos sempre a conspirar, mas estávamos só a falar de música.»
A política nunca os separou, o que sempre os moveu foi o altruísmo, diz João. «No primeiro ano em que tivemos lucro, partilhámos tudo com a vila, demos dinheiro a associações e comprámos cabazes para as pessoas.» E, com isso, aprenderam uma lição.
«Um festival não é uma ciência. No ano seguinte, tivemos prejuízo e tínhamos gasto todo o lucro do ano anterior.»
Há festivais que vão tomando conta dos territórios, mas Coura foi tomando conta dos corações. Há dez anos, Pedro Trigueiro, agente de vários artistas, escreveu um texto no Diário Digital intitulado «Coura é amor». O título acabaria por cunhar o festival, por ser unanimemente considerado a expressão que melhor define o espírito. Mas Coura também é partilha – «as pessoas da vila oferecem sopa e café em casa às pessoas que visitam o festival», elogia João Carvalho. E é descoberta. Filipe Lopes, o homem que mantém as contas da empresa em ordem e faz as cobranças difíceis, confessa, com ironia, que não sabia nada de música até ter descoberto ali «que é possível inventar tantas bandas novas todos os anos».
Paredes de Coura parece um lugar inventado onde nunca nada pode correr mal, e de onde é impossível falar sem ser com exagero. Um lugar que nos devolve sempre os 16 anos, porque nos deixa sempre à flor da pele.
Carlos Loureiro nunca há-de esquecer o concerto dos Coldplay. Associa os britânicos a 2000, o ano em que nasceu a filha. Nunca faltou a uma edição. Nem ele, nem o pai, com 79 anos, nem a mãe, com 80. Tiago Brandão Rodrigues inclui sempre os Tindesticks nas playlists que lhe pedem, «porque algo belo e especial aconteceu naquele concerto – a maturidade do festival» e da sua relação com ele. Vitor Paulo ri quando lembra «a utopia maravilhosa de acreditar que os vips queriam ir para a relva e não estar confinados numa zona fechada». João Carvalho lembra quando não queria cobrar o preço dos bilhetes (mil escudos em 1993) com medo de que as pessoas não aparecessem. José Barreiro destaca o ano em que PJ Harvey foi para o meio do recinto para ver a estreia dos Yeah yeah yeahs.
Qual é o contrário de despenhar? Coura é isso, um intervalo da vida. E é a banda sonora das nossas vidas. Eles dizem que terão sempre Coura. Nós também.
O MOMENTO DECISIVO
Nos anos 1990, não havia repeat. A pulsão de ouvir a mesma canção impunha gravá-la sucessivas vezes numa cassete. João Carvalho estava apaixonado. Lado A: Purple Rain na versão de Prince. Lado B: Desejo, dos Ecos da Cave, hit cravado na cabeça: «Talvez até estejas no teu quarto e me desejes aí.» Em 1993, quando Coura era cartaz nacional hipster, a expetativa de um coração apaixonado era ouvir aquilo. «Estava à espera daquela canção. Mas o vocalista mudou nesse ano e renegou o legado.» Facada no alinhamento e no momento. O cartaz do festival que foi inventado numa noite de fado abriu-se ao mundo na sexta edição, em 1998, ano dos Tindersticks e dos Divine Comedy. Mas o concerto da vida de muita gente é português, e aconteceria em 2012. Ornatos Violeta ressuscitam por uma noite, rendem a encosta e põem milhares a chorar naquele relâmpago que é o instante decisivo de uma vida. Manuel Cruz, o vocalista, foi sacerdote e salvação. Mas Paredes de Coura está cheio desses momentos em que a música é atirada à cara como lume direto ao coração. Raras vezes o fim da tarde não é epifania. Lista nenhuma pode sintetizar os melhores concertos de 23 anos.