Falso monólogo

Notícias Magazine

Marta, my dear,

– Estranha sensação, responder a carta não recebida! E pede a palavra que as crianças brandem sobre os nossos ouvidos e cabeças, em ameaça longa e tão riscada como os discos que guardo no baú com as iniciais de meu avô – porquê? Os meus traços paranoides exultam, num tiro ao alvo hesitante e inventivo: «A Marta esqueceu-se; enviou ao editor, que desprezou a minha caixa do correio; a tecnologia continua a sua obra de sapa, ajudada pela minha ignorância, premi ou ignorei determinada tecla e o pony express da Internet tombou, exausto, nos arredores de Coimbra; ou não resistiu ao leitão da Mealhada!, certo é que à Invicta não chegou; o Casillas intercetou-a, com aquela sua mania de frustrar os benfiquistas.» A muito custo, áreas cerebrais mais saudáveis rompem o bloqueio e apresentam um plano B que, como o Dr. António Costa, espero não justificado – «e se adoeceu, não será melhor telefonar?» Não digo que espere até abril, como prevê o Expresso, mas ainda é cedo, a gripe cola-nos a sonolência e cama, se falar, falo mais tarde – «tudo bem, menina?».

E agora? Outro sindicato neuronal avança sugestão preguiçosa, a coberto de encantatória demão de lógica – «não podes responder a carta que não chegou, Júlio, aproveita e adianta a conferência de Lisboa». Sorrio; conheço-me bem. (Se tiro do facto as devidas ilações é outra história.) Para evitar a armadilha basta trocar a palavra «responder» por outra – «escrever». É possível retorquir ao silêncio por meio da pena e com a mesma pela mão – basta juntar interpretação credível, lamento sincero, desculpa sentida e nasce o apelo, irmão do de Miguel Ângelo à obra que, de tão bela, o desafiava a desafiar os limites – «fala!».

Pensar. Ser um excêntrico neste mundo ofegante e nadar em águas mais profundas – meditar. Desde quando a ausência de uma carta interrompe o diálogo interior com quem conhecemos bem? Pergunta ou dúvida surge e acarreta face, ombro, sorriso e palavras do outro, algo nos diz que, ao vivo, o amigo teria debitado aquelas opiniões ou suas primas direitas; as pessoas que vivem cá dentro não precisam do carimbo da carne e do osso para serem reais; isso foi há muito, muito tempo. Marta, my dear, não escrevo resposta ao seu silêncio, transcrevo diálogo injustamente decretado imaginário.

Acertou, continuo avesso a alegrias e festejos programados, no Carnaval pirei-me. Não, Madrid. O Prado, o Reina Sofía, o Thyssen? Mandam-lhe cumprimentos. Apague já o sorriso irónico, claro que emoldurei Ingres e Alberto Durero! – os espanhóis e as traduções, ainda me lembro de os jeans se chamarem pantalones vaqueros – em tortillas, Marqués de Cáceres, paellas e aguardente de medronho. A cereja no topo do bolo? Entrar em restaurantezinho típico e cair-me nos braços o João Fernandes. Não podia estar mais de acordo consigo: ver o trabalho dele em Serralves – e não só – reconhecido é bom, o Reina Sofia arranjou um subdiretor do carago. Ou seja: do Porto, embora transmontano.

E você? Palavra? Soube-lhe bem? Então, como diria meu pai, não lhe pode fazer mal. Perdão? Até me ofende, sou um túmulo! (Quem diria? As mulheres, ts, ts…)

[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]