Volto ao realizador que estreia agora mais um filme como quem regressa a um porto seguro, valores certos no relativismo cultural que nos domina os dias.
Uma vez escrevi uma crónica que começava assim: «Não sei o que vai ser da minha vida quando o Clint Eastwood deixar de fazer filmes.» Vinha isto a propósito de mais uma obra-prima do realizador, o filme Sniper Americano, por acaso um filme passado numa guerra, a do Iraque, que se iniciou a 11 de setembro, há 15 anos. Esse era – como tenho a certeza de que será O Milagre no Rio Hudson, em estreia agora – um filme com aquele tema central das histórias de Eastwood que os torna tão americanos e tão meus: gente que pensa pela sua própria cabeça, que raramente cede mesmo que acabe por fazer erros e, sobretudo, por ficar na mais absoluta solidão.
No final, vai estar tudo bem, porque estar tudo bem, no mundo de Eastwood, é avaliação para ser feita naquele teste diário do espelho, em que uma pessoa é confrontada, todas as manhãs, não com o que o mundo acha dela, mas com o que o seu próprio olhar vê de si mesma. Nesse filme, alguém que a América devia considerar um herói à antiga, um sniper que na guerra no Iraque matava os maus para defender os seus, regressa a um país e a uma sociedade que não valorizam o que ele fez no campo de batalha. Que até duvidam da justeza das suas ações, tendo em conta o macrocenário de uma guerra que, sim, começou no ataque às torres gémeas, mas se tornou inganhável, segundo grande parte da opinião pública e publicada.
E aí estava ele, o sniper, um Bradley Cooper de duros olhos azuis, deprimido e solitário. Uma personagem, como todas, muito construída à semelhança do realizador – tirando a parte do deprimido, que a sua vida tem sido um carrossel de emoções e alegrias. Clint Eastwood é, como diz João Gobern no ensaio sobre ele publicado nesta revista, «o último dos duros», alguém que «não vai em grupos», em modas.
É essa também a explicação benigna para as suas posições políticas, ele que já foi mayor de uma cidade californiana. Impossível de qualificar de forma maniqueísta de acordo com as velhas categorias, Eastwood é um republicano não filiado, que defende a livre iniciativa, mas também o aborto e a igualdade, e é contra a discriminação dos homossexuais. Eastwood terá declarado votar em Donald Trump, por oposição a Clinton, apesar das «loucuras» do candidato, como lhes chamou. Em Trump, o realizador vê um milionário que não precisou do Estado, ou da política, para enriquecer, como acha que aconteceu com os Clinton. E acrescenta-se que o irrita a demonização que tem sido feita do candidato pelos media.
Isto não é uma desculpa – perdoarei com dificuldade a Eastwood esta deriva, e até usando os seus próprios argumentos. Trump é o mais egoísta dos líderes, alguém que está disposto a envergonhar, a humilhar e a derrotar quem se cruzar no caminho dos seus interesses e tem muito pouca consideração por outra individualidade que não seja ele próprio. Eastwood, pelo contrário, é o filósofo do individualismo humanista. Devolve-nos ao mais básico, ao mais humano, que ele respeita com devoção. Essa é, como eu dizia na anterior crónica, a face americana que lhe chega dos westerns e que funciona, para mim «como um porto seguro no relativismo cultural que nos rodeia». Volto a Clint Eastwood como quem regressa a casa, a cada ano, a cada filme novo.
[Publicado originalmente na edição de 11 de setembro de 2016]