A modelo China Machado morreu nesta semana, aos 86 anos, nos Hamptons, a zona chique a norte de Nova Iorque, onde morava. Hoje faria anos. No dia de Natal, esse Natal católico que a marcou logo como diferente quando nasceu, em Xangai, em 1929. Porque foi isso que ela foi sempre, diferente: a primeira modelo não branca, ou não caucasiana como dizem os americanos, a aparecer na capa de uma revista de moda americana, e a primeira fora dos cânones a desfilar para casas grandes de moda.
Esta foi, de novo, a razão por que a morte de China Machado foi notícia dos meios de comunicação social internacionais. Como tinha sido a sua vida. Seria sempre um marco. Mas é mais do que isso o que a traz para estas páginas. China Machado fundou a ideia de fusão na moda, antes de isso estar na moda, é verdade. Mas é irónico que tenha sido ela a inaugurar essa tendência, porque ela era já produto dessa cultura que, sem dar muitos nas vistas, inaugurou as fusões, há mais de 500 anos.
Já adivinharam, China era descendente de portugueses e das raízes que espalhámos no mundo. Nascera em Xangai, o seu nome de batismo era Noelie de Souza Machado, sinal de séculos de casamentos entre os portugueses coloniais e as terras por onde andaram, no oriente. Goa, de onde veio a sua avó materna, ou Hong Kong, onde o pai, um português comerciante de ouro de origem macaense, conheceu a sua mãe. Tudo isto a marcou indelevelmente, tanto que, aos 80 anos, confessava ainda coser a sua própria roupa, como faziam as tias goesas, e cozinhava comida macaense em casa. Isso contou na sua biografia, a que chamou Sempre Corri atrás do Riso, na qual confessava que nunca caíra na esparrela étnica americana, «nunca disse sou metade isto ou metade aquilo, na verdade eu podia ser qualquer coisa».
E podia. E foi. Crescera em Xangai, na concessão francesa – falando francês nas ruas, português em casa e chinês com as criadas –, foi expulsa, de casa e da China, pela ocupação japonesa, acabou por ir morar para o Peru, ainda criança, e foi aí que ganhou o nome de China, na crueldade humana para com o que é diferente, desta vez por causa dos seus olhos alongados.
A essa diferença China deu a volta, em parte porque teve sorte, em parte porque teve força. Foi a modelo mais bem paga na Europa, quando desfilava para Hubert de Givenchy ou Balenciaga. Oleg Cassini levou-a para Nova Iorque em 1958. O famoso fotógrafo Richard Avedon tornou-a sua musa e chamava-lhe a mulher mais bonita do mundo. China venceu os que desconfiavam dela e impôs a sua beleza – diferente – no mundo. Foi namorada do toureiro Luís Miguel Dominguín e do ator William Holden, mulher de Martin La Salle. E nunca esqueceu as origens que lhe davam os alicerces: usava palavras portuguesas nas entrevistas, como «saudade» e «lembranças». Acabou por quebrar mais um tabu, tornando-se modelo com 80 anos, em campanhas publicitárias e sendo capa da New York.
E esta parece-me uma boa história para hoje, depois de uma semana triste, num dia que devemos continuar a dedicar à paixão pelos outros e ao respeito pela diferença.
[Publicado originalmente na edição de 25 de dezembro de 2016]