Não é propriamente novidade: o demónio anda nas caixas de comentários dos jornais. Mas, há um par de dias, veio ao Facebook organizar uma petição. É coisa que acontece muitas vezes, demasiadas. Este abaixo-assinado leva já 300 mil assinaturas e pede a condenação de um casal por negligência – deixaram o filho de quatro anos cair no fosso de um gorila, no Zoo de Cincinnati. Depois de alguns minutos aflitivos, dez, os tratadores decidiram abater o animal. Não é que ele tenha dado algum sinal de querer atacar a criança, mas sedá-lo seria sempre perigoso. Pesava 180 quilos, poderia cair sobre o rapaz e matá-lo. Ou, em pânico, tornar-se agressivo. Foi uma decisão rápida.
Negligência, aponta o demónio. Que um pai e uma mãe não têm direito a distrair-se um minuto. Que um acidente não pode acontecer. Em setembro do ano passado, eu também vi o demónio comentar a morte de uma criança de cinco anos em Viseu. O miúdo estava com a avó e disse que ia buscar um carrinho para brincar. O pastor alemão da família, com quem a criança convivia normalmente, mordeu-o na jugular. E o demónio disse que a criança não tinha nada de ir provocar o cão, que era bem feito porque o bicho estava preso, que a avó é que devia ir de cana, a culpa era do gaiato e o animal era uma vítima. Não era. Era um animal.
A defesa dos animais é um traço de humanidade. Mas, quando vejo alguém dizer que mais depressa salvaria o seu cão do que um desconhecido em risco, passo-me. Porque isso implica um desprezo total pela humanidade. É a humanidade que nos permite ser a espécie dominante e depois contrariar esse domínio – algo que, se virmos bem, nenhum animal faria. Então, de cada vez que alguém abdica da humanidade em nome da defesa das outras espécies está, na verdade, a abdicar do que torna o possível a sua salvaguarda.
Está a crescer este discurso cego que vê nos bichos qualidades que eles não podem possuir. E isso preocupa-me, até porque acredito que ele só pode derivar de uma sociopatia profunda. O demónio é isto: tornarmo-nos mais animais do que os animais, atacarmos mais as pessoas do que um animal alguma vez faria, e perdermos toda a humanidade pelo caminho. Não, o demónio não está nos animais que atacam pessoas. Está nas pessoas que se tornam animais.