A minha bola tem forma de coração *

Notícias Magazine

Lembro-me das tardes de sábado e de domingo passadas a correr à volta da mesa de madeira ou a brincar às escondidas, na horta que os meus avós mantinham, em Carnide. Entre os risos e os gritos agudos das vozes dos mais pequenos, eu incluída, furava o som do relato que vinha do rádio pendurado na árvore. Sentados nos bancos de madeira, à mesa, estavam os graúdos, que iam discutindo as jogadas.

No final, ficavam longos minutos a comentar os «lances do jogo» ou os «casos do jogo», ou lá como se diz agora. Na altura, era «apenas e só um grupo de pessoas a mandar uns bitaites acerca do que tinham visto em campo, numa espécie de ritual que servia para exorcizar os nervos da partida e aliviar tensões (de derrota ou vitória).

Cronica ana Bacalhau

A minha avó, conta-me o meu pai, não conseguia ver os jogos. Os nervos não a deixavam. Ao invés, enfiava-se na cozinha, de porta fechada, a comer bolachas até acabar.

Eu sou um pouco como ela. Não consigo enfrentar aquilo. É ridículo, eu sei. Mas mais ridículo seria cair como um tordo a meio da coisa, de tão afogueada que fico. Por isso, disfarço com um ar de quem não percebe nada da coisa (correcto), porque se está a marimbar para a coisa (errado). Não podemos verdadeiramente assumirmo-nos como fãs de bola se não conseguimos ver os jogos, parece-me um encadeamento lógico. Mas, justiça seja feita ao meu pobre coração, a verdade é que sofro como qualquer adepto.

Mais ainda, enfiada no quarto a fazer sei lá o quê para passar o tempo e com o coração a sair-me pela boca de cada vez que ouço algum grito vizinho a anunciar a calamidade ou a glória. Tenho esta relação exótica com o futebol, bem se vê. Irrita-me sentir a importância desmedida que se lhe dá, mas irrita-me mais sentir a importância desmedida que lhe dou, sem saber o nome de mais do que dois ou três jogadores.

É irritação de curta duração. Porque depois lembro-me das vozes dos meus que já partiram, cristalizadas nas memórias daqueles fins-de-semana, sentados a falar apaixonadamente de bola e percebo, com um sorriso cheio de emoção e carinho, que a minha alegria nos golos que festejo e nas vitórias que celebro é o eco da alegria que seria deles se cá estivessem para ver.

* Esta crónica foi escrita no dia seguinte à conquista do Campeonato Europeu de Futebol, estando claramente ainda imbuída das fortes emoções do jogo que quase levaram a cronista ao desfalecimento e, no final, ao júbilo.

(Fotografia Ana Bacalhau)

[Publicado originalmente na edição de 24 de julho de 2017]