Há uma expressão anglo-saxónica que define bem o lugar que a música popular tem para muitos: guilty pleasure, ou seja, algo que se ouve com vergonha, às escondidas, mas com redobrado prazer. Durante muito tempo, a música popular a que se chama vulgarmente de «pimba» teve esse papel para muitos dos que ouviam as suas canções com um certo deleite escondido.
No fim de contas, as canções populares, mormente, as canções brejeiras, têm uma longa história na música portuguesa (e na música popular de tantos outros países, acrescentaria). E sempre houve esta tendência para considerar o «brejeiro» como algo que não tem elevação e que, portanto, não pode ser canonizado nas respectivas disciplinas artísticas.
Para além do «brejeiro», incluiu-se no pacote quase todas as manifestações artísticas populares que, pela sua natureza, tinham uma simplicidade e um carácter directo na forma como faziam passar a sua mensagem. Isso explicará porventura uma certa resistência ao popular por uma elite que quase sempre ditou que a elevação artística de uma obra se encontrava directamente ligada à profundidade ou complexidade intelectual com que era apresentada ou aos meios utilizados para a promover. A editora certa, a sala de espectáculos certa, a crítica certa, os círculos de conhecidos e amigos que abonavam a seu favor.
Ora, a música popular, quer falemos do folclore, do cancioneiro de cada região ou das canções «românticas» e «brejeiras», sempre se apresentou fora desses circuitos. O seu público não está aí. Está nas feiras, nos adros das igrejas das cidades e aldeias onde se fazem as festas populares de Verão. Também é verdade que nunca pretenderam aí estar. Ou, pelo menos, a maior parte dos artistas populares nunca pretendeu aí estar. E, com a excepção do fado e de algum folclore, o cancioneiro popular nunca teve grande peso ou importância no discurso intelectual português.
Charlie Parker era um fã assumido de música country, que se poderia comparar em alguns termos à música popular portuguesa. Quando um amigo, estarrecido ao saber que um dos maiores e mais virtuosos músicos do século XX ouvia música country, lhe perguntou por que razão gostava de ouvir aquele tipo de música, Charlie Parker respondeu algo parecido com isto: «Ouve as histórias que as canções contam. Aqueles tipos sabem contar uma história.»
A arte de contar histórias é uma arte popular, que sempre carregou a tradição oral ao peito e trouxe às suas costas memórias de tempos em que o papel impresso era apenas reservado a muito poucos. E as canções populares sabem contar histórias que interessam a quem as ouve e que prendem quem as ouve, sem estarem preocupadas com a pertinência intelectual ou artística das suas afirmações.
Este despretensiosismo e honestidade são precisamente as características mais difíceis de manter sempre que se tenta trabalhar a música popular, retirando-a dos seus meios e intérpretes de eleição. Ao mínimo desequilíbrio, à menor hesitação, tudo pode soar a gozo, a pretensioso, a forçado e, sobretudo, a sobranceiro.
A maior virtude de Deixem o Pimba em Paz, o espectáculo de Bruno Nogueira, Manuela Azevedo, Filipe Melo, Nuno Rafael e Nelson Cascais, é precisamente a de reler os clássicos da música popular sem os julgar. A virtude torna-se maior ainda quando se junta a Orquestra Metropolitana de Lisboa, sob direcção do maestro Cesário Costa, e arranjos de Mário Laginha e Filipe Melo e se mantém a dignidade artística dos originais e das versões intacta. Um «conseguimento» gigantesco e a minha maior vénia a todos os envolvidos neste espectáculo.
E quem nunca estremeceu discreta ou assumidamente ao ouvir as histórias de garagens de vizinhas, de comunhões de bens ou de sons de cristal, ou mente ou não é filho de boa gente.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
12-7-2015