Um sonho megalómano de cinco estrelas, com vista para a Lagoa das Sete Cidades, na ilha de São Miguel. O Monte Palace era o mais luxuoso hotel dos Açores. Fechou as portas há 25 anos e, desde então, definha em silêncio. Esta semana, um grupo de investidores estrangeiros comprou finalmente o edifício. A vergonha turística açoriana pode muito bem voltar a ser o orgulho do arquipélago.
No dia 18 de agosto, dois sites em que se vendem casas – OLX e Imovirtual – anunciavam a venda do hotel Monte Palace, na ilha de São Miguel, por 380 350 euros. Mostravam fotografias de um edifício em escombros, mas o preço de licitação não deixava de ser uma pechincha. Aliás, ninguém pode apontar falta de rigor ao anúncio: «Edifício para recuperação, situado na vista do Rei, com uma deslumbrante paisagem sobre a Lagoa das Sete Cidades e o Atlântico. Antiga unidade hoteleira de cinco estrelas para turismo. É constituído por cinco pisos. Tinha 88 quartos, dos quais uma suite presidencial, quatro grandes suites de luxo, quatro quartos duplos com saleta, 27 quartos duplos e 52 suites juniores. Possuía ainda dois restaurantes, três salas de conferência, uma discoteca e outras lojas. Excelente oportunidade de investimento.»
Em 25 anos, era a primeira vez que o turismo açoriano via possibilidade de resolução do seu calcanhar de Aquiles. Diogo Caetano, da Associação Amigos dos Açores, pensou: «É agora ou nunca.» O geólogo de 35 anos há muito que se queixava da vergonha que o hotel representava. «Está um monstro abandonado junto ao ponto mais visitado da ilha. O aumento do fluxo de visitantes está a estrangular a capacidade hoteleira, o tempo de pensar numa solução só pode ser este.» Apressou-se a organizar uma petição, a pedir que o governo regional adquirisse o imóvel. «Sempre duvidei que alguém quisesse recuperar o edifício como um hotel, porque a localização não deixa de ser isolada. Mas tem capacidade para acolher restaurantes, lojas de turismo e fazer um grande parque de estacionamento.» Nos dias de verão, de facto, os autocarros fazem fila para estacionar junto ao miradouro da Vista do Rei, a meia dúzia de metros do Monte Palace. Diogo é um ecologista confesso, e aquele velho hotel podia resolver o problema de sobrelotação do miradouro.
No entanto, antes de recolher as 400 assinaturas que garantem discussão na Assembleia Regional, já o espaço tinha sido vendido. Várias fontes oficiais, que não se quiseram identificar para esta reportagem por considerarem que se trata de um negócio privado, confirmaram à Notícias Magazine que o edifício foi vendido esta semana a um grupo de investidores europeus e árabes, e que teria aproveitamento turístico. O projeto ainda não está totalmente definido, mas parece bastante provável que, além de um hotel, acolha uma grande zona de apoio ao ex libris da ilha. Cafés, lojas, casas de banho. Por estes dias, o único comércio na zona é o dos vendedores ambulantes, sujeitos à intempérie.
MARIA HELENA PAULINO TEM 49 ANOS, toda a gente a conhece por Milena. Em 1990, era rececionista do Monte Palace. «Passavam-se semanas sem aparecer um único hóspede. Mas sempre que vinha um autocarro de turistas, toda a gente corria para aqui.» Hoje decide mostrar-nos o hotel de onde só guarda boas memórias. «Estivemos abertos ano e meio. No dia em que nos disseram que isto ia fechar, o diretor estava em Lisboa, a receber um prémio. O Monte Palace tinha sido considerado o melhor hotel do país.»
Na fachada estão presas várias letras com o nome do edifício, mas a maioria já caiu de velha. «Aqui eram as portas automáticas, de vidro e com o brasão do Monte Palace a dourado.» Agora, no mesmo local, não há mais que graffiti. Um deles diz «I’m Azorean, please help me show this shame to the world» («Sou açoriano, ajudem-me a mostrar esta vergonha ao mundo»). Do outro lado, onde antes era a entrada para a discoteca Cahamarrita, uma parede com uma inscrição em francês («Sous la ruine, l’ìle», ou, em português, «sob a ruína, a ilha») está cravejada de balas. «A PSP veio fazer aqui um exercício de fogo real e dispararam sem sequer pensarem duas vezes», lamenta Milena. «Como se isto não estivesse degradado o suficiente.»
Em junho de 2014, o jornalista Pedro Mourinho fez uma reportagem sobre o Monte Palace para a série documental Abandonados, da SIC. E essa foi a única vez em que Milena entrou no edifício, desde que deixou de trabalhar ali. «Custa muito», e vai passando para o interior, entra no que um dia foi um lóbi com um jardim de Inverno luxuoso, com vista para os três andares de hospedagem. É um choque. «Isto está muito pior do que há um ano.» Uma parte do teto caiu, o entulho e a água tomaram conta de tudo, mas alguém decidiu pintar avisos junto aos fossos dos elevadores e das escadas. Perigo. No Go. Cuidado. «Como é que isto ficou assim, meu Deus?»
Apesar de ter encerrado em 1990, o Monte Palace esteve guardado por seguranças e cães até 2010, altura em que a empresa proprietária (o grupo madeirense Siram) faliu e o Banif penhorou o imóvel. Jorge Loures tinha então 16 anos e, no dia em que entrou, deixou-se imediatamente fascinar. «Via-se que o hotel tinha sido esvaziado, mas as coisas estavam relativamente intactas.» Carpetes, vidros nas janelas, documentos em ordem, arrumados nas prateleiras. «Voltei passados quinze dias e estava tudo a saque.» Não sobravam janelas nem mobiliário (havia pouco, grande parte tinha sido transferido para um hotel do mesmo grupo junto a Vila Franca do Campo, o Baía Palace). Então o rapaz começou a vasculhar os documentos, recolher material, documentar fotograficamente os despojos do edifício. «Ao fim de uns tempos até os elevadores panorâmicos tinham sido roubados.» Os habitantes das povoações próximas contavam-lhe que viam à noite os camiões aproximarem-se da estrutura, ouviam barulhos de obras, pensavam que era a recuperação em marcha. Não era.
JORGE ACABARIA POR FAZER UMA INVESTIGAÇÃO notável sobre o Monte Palace, recolhendo artigos de jornal, testemunhos de antigos trabalhadores, documentos e criando um documentário no YouTube chamado História de Uma Ambição Desmedida [as fotografias antigas desta reportagem foram cedidas por ele]. «Foi precisamente isso que aconteceu aqui. Um projeto megalómano, que dificilmente funcionaria.» Milena parece concordar com ele, a localização e o clima – que convoca nevoeiro constante – deixavam o hotel as mais das vezes um deserto. Mas a sua explicação é outra. «No projeto original estava previsto construir um casino, que nunca chegou a abrir. As salas de jogo foram transformadas em salas de conferências, mas só em eventos muito localizados é que enchiam.» A noite de inauguração, em 1989, foi um sucesso, com um concerto de Fafá de Belém no lóbi principal. A presidência aberta de Mário Soares no arquipélago foi outro momento alto, tal como algumas reuniões oficiais de marcas automóveis e (dizem) outras menos oficiais da NATO. De resto, os hóspedes eram poucos para pagar salários a 130 funcionários, assegurar a manutenção, saldar as contas de água, luz e aquecimento. Segundo a tabela da época, os quartos mais baratos custavam 10 100 escudos, os mais caros 71 500. A preços de hoje, segundo a Pordata, seriam valores entre os 110 e os 790 euros.
Milena vai percorrendo os vários andares do edifício, cada sala que entra é uma convocatória de lágrimas. Aqui era o restaurante Dona Amélia, aqui o D. Carlos. O bar chamava-se D. Urraca e havia salas inteiras de cacifos no piso térreo. A antiga rececionista vai subindo a escadaria redonda que há muito perdeu o corrimão. Lembra-se das cores das alcatifas, «no primeiro piso eram verdes e castanhas, no segundo eram laranja, no terceiro eram rosa e azul-cobalto.» Há corredores sem fim com vista para a Lagoa, cenário de suster a respiração, mas pouco mais que paredes descascadas, lixo e água, sempre água. «As camas eram de dossel, os mármores da casa de banho aquecidos, era tudo um luxo que nunca se tinha visto nesta ilha.» Depois do encerramento, apenas cinco trabalhadores passaram para o hotel gémeo, o Baía Palace. Maria Helena foi uma delas. «Mas esta será sempre a minha grande escola, o lugar que guardo com mais carinho.» Encolhe os ombros e enxuga o rosto.
DESDE 1977 QUE HAVIA PLANOS para a construção de um grande empreendimento na ilha. O investimento era francês (da empresa Creuzeot-Loire, financiada pelos créditos Coface, DuCroire e Multidivisas, no valor de quatro milhões de contos – cerca de 360 milhões de euros atualmente, refletindo a variação da inflação) e isso ajuda a explicar que o projeto original do hotel tenha sido assinado por Olivier-Clément Cacourb, nome maior da arquitetura francesa. Nas suas obras incluem-se a universidade de Orleães, o Palácio do Festival de Cannes ou a Cidade Internacional das Artes de Paris. «Mas o departamento de urbanismo da câmara de Ponta Delgada obrigou a fazer muitas transformações, para que a obra tivesse maior continuidade com a paisagem», conclui Jorge Loures, que teve acesso a todo o projeto.
Mesmo que tenha pouco mais que a vista e as paredes em bruto, o Monte Palace ainda é uma obra extraordinária. Longos corredores, os quartos com varanda sobre as Sete Cidades, os canteiros de onde caíam plantas sobre o lóbi, em todos os andares. Estava, pegando em fotografias antigas, decorado com pormenores de art déco, o gosto francês em pleno. «Vieram os melhores funcionários de hotel do continente, e muitos estrangeiros, ensinar-nos a trabalhar com todos os requintes», lembra Milena, tal como lembra que só a equipa de receção era constituída por vinte pessoas. Junto ao lóbi, perto do que antes era o acesso à sala de snooker, alguém grafitou a palavra «nada». Alguns turistas vão entrando, estrangeiros e continentais, tiram fotografias do monstro. Milena teme uma tragédia, olhando para uma criança no corredor do terceiro piso, há buracos e armadilhas onde menos se espera. «Isto já não é nada», profere, emocionada. «Nada.» E, no entanto, aqui cabe tudo.