Nos tempos idos das perseguições aos judeus e muçulmanos no país vizinho, por força do tribunal administrado por oficiantes religiosos que conhecemos como inquisição, foram muitos os que atravessaram a fronteira, refugiando-se nos castelos e localidades raianos, de norte a sul do país. As ordens religiosas a quem estavam entregues deram guarida a muitos passantes, peregrinos e caminheiros, tratando-lhes maleitas e feridas e, ao mesmo tempo, alimentando-os.
Um dos imperativos da cozinha de outrora era, por isso mesmo, não desperdiçar. Utilizava-se muito a técnica de ensacar em tripa as sobras e aparas resultantes da preparação das refeições, juntando-se invariavelmente unto de porco como garantia de longevidade. Utilizava-se mais tarde, como ingrediente de pratos diversos e a constituição incluía muitas vezes o pão, este normalmente de centeio, ácido, que de propósito ou não, era um factor moderador da evolução do enchido improvisado. Só assim se explica a bateria de enchidos, herdeira direta dos tempos medievais e que ainda hoje encontramos nas terras, em feiras, lojas e junto dos produtores, para nosso prazer.
A farinheira é um ensacado que leva normalmente farinha crua, juntamente com banha e temperos, que há que cozer para ganhar a forma cheia e pronta a comer, enquanto a alheira é preparada com carnes, alho e pão, mais dada à fritura ou assadura diretas.
A farinheira do Sabugal e vários outros enchidos vão contudo contra esta espécie de ordem estabelecida. Apresenta a particularidade de ser feita com pão, o que a aproxima muito da alheira, e ao mesmo tempo é conclusão lógica da forma primeva de aproveitamento das aparas na cozinha.
As alheiras apareceram mais tarde na terra fria transmontana, mas o seu aspeto continha já o indulto, pela semelhança visual com as farinheiras do sabugal, para marranos e cristãos-novos que as ostentavam para escapar à prisão e condenação pela autoridade dos tribunais inquisitórios. Está muito enraizada a ideia de que as alheiras eram feitas apenas de aves, mas na verdade em exposição a sua cor dourada era demasiado diferente da dos enchidos escuros do fumeiro tradicional.
Não é só quando vamos ao Sabugal que percebemos isto: o chouriço de abóbora de Boticas também nos põe a pensar e prometer que vamos querer saber mais sobre o fabuloso universo de enchidos que os nossos antepassados nos transmitiram. O tempo que vivemos é de esclarecimento, é imperativo que saibamos mais.