
Os que me conhecem sabem que não entro numa sala de cinema depois de se ter feito escuro para que Ingrid Bergman nos ilumine. E nunca me lembraria de fotografar a Mona Lisa. Bem, a Mona Lisa, talvez. Está tão para lá dos vidros de proteção e envolta por grupos de turistas japoneses que lhe perdi o respeito religioso. Soltei a palavra. Embora sem crença religiosa guardei um respeito infinito por certos mistérios. Uma vez, no meio das anharas do Leste angolano, num hospital de campanha, vi uma menina sem uma perna levada por mina. Era de etnia bacongo, quer dizer, do Norte, a mil quilómetros da sua aldeia e estava febril. Encontrei num bolso um toalhete perfumado, daqueles que nos dão nos aviões. Abri o saquinho, dei à garota o papel dobrado, ela cheirou, passeou o toalhete na cara e iluminou-se (sim, como o sorriso de Ingrid Bergman na Pousada da Sexta Felicidade). Não fosse eu um cínico, caía de joelhos.
Confesso, sou um descrente mas com ataques místicos. Estes acontecem-me com um filme, com gente e, até, com árvores. Uma vez, num parque natural na Califórnia, não consegui tocar no General Sherman, a mais larga das sequoias. Esse respeito de catedral dá-me com alguma frequência nos museus – com o desconto, já referido, na sala da Mona Lisa. Aí, comporto-me como um basbaque porque o assunto é a multidão.
Agora, com os lótus de Monet (quantos tons de azul?), na Orangerie, com Canaletto, contando cada uma das pessoas que ele consegue meter na Praça de São Marcos, ou procurando o mocho, os funis, o pé dentro do jarro nas Tentações de Santo Antão, ali nas Janelas Verdes, sou um intratável misantropo – não quero ser incomodado pelo resto da humanidade, com exceção de Hieronymus Bosch e os seus colegas. Num museu, sou um monge recolhido.
Eu, que nos centros comerciais sou o campeão nacional de abrir e segurar portas para os outros passarem, sejam velhos, jovens atletas ou mulheres grávidas, viro-me para mim num museu. Aliás, num museu há outra forma de ser? Uma senhora simpática pode querer apanhar toda a Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte, aconteceu-me em Chicago, mas não me importo de lhe estragar a foto se preciso de me aproximar para ver a diferença entre os pigmentos do relvado ensolarado e os da sombra usados por Seurat. Sim, num museu, o meu direito também acaba onde começa o dos outros, mas em outros não estão incluídas máquinas fotográficas. Se a máquina se travestir em companheira do dono, num selfie, a minha passada não se importa de no instante seguinte ser a dum intruso. E se o selfie for feito com uma daquelas varetas que lhe aumentam o ângulo, torno-me funcionário do Turismo das Filipinas.
O outro saca do selfie e eu do cartaz com que agora, nos museus, ando sempre: “A moda agora é as Filipinas!” Os adeptos dos selfies são pessoas muito bem mandadas quando se fala de moda. Eles vêm pedir-me a dica e eu mando-os para Manila. Não sabiam? Ah, pois é, agora há lá um museu feito expressamente para os selfies. “Está a ver O Baloiço, de Fragonard?” Eles não estão a ver, mas eu explico-lhes: uma dama a baloiçar deixa voar o seu chinelinho também rosa. No museu Art in Island, aberto em fevereiro em Manila, O Baloiço está pintado em trompe l’oeil, o chinelo sai da tela e o visitante pode fotografar-se a apanhá-lo. Em A Igreja de Auvers, de Van Gogh, é o próprio fotógrafo que pode sair da moldura. Em As Debulhadoras, de Millet, as três camponesas saltaram da tela e debruçam-se no chão do museu – que selfie fantástico, apanhar com elas os grãos das espigas… Em O Grito, de Edvard Munch, o turista pode imbuir-se da histeria ambiente e parecer arrancar um pedaço da tela. E assim por diante. São mais de 200 quadros clássicos enganadores que, depois do selfie, ficam mais enganadores: sou eu euzinho, tal e qual, metido na criação de Da Vinci.
Eu julgo que tudo começou quando a plateia, com palmas, ousou interromper Sinatra quando se deu conta de que ele começava a cantar My Way.
[Publicado originalmente na edição de 5 de abril de 2015]