
Samuel Clemente foi meu tio-bisavô, de vida misteriosa e herança pouca. Os Fernandes de Trás-os-Montes são gente de muita prole, o meu pai teve 15 irmãos, calculem a multidão que as duas gerações anteriores eram. Pouco mais do que bebé, Samuel Clemente foi entregue aos padrinhos que emigraram para a América, em 1840. No manifesto do veleiro Attica, à chegada ao porto de Nova Iorque, vindo do Havre (França, mas ele embarcou no Porto), é registado com «5 anos», naturalmente «sem profissão» e já só «Samuel Clemente», tendo perdido o Fernandes logo no cais. É o único documento que tenho dele, além de uma fotografia. Nesta, ele está como nos voltou: de fato branco, farta cabeleira, também branca, e uma bigodaça de cantos caídos – mas os olhos brincalhões desfazem a imponência. Tinha nascido em 1835 e morreu no ano, o da foto, em que regressou, 1910 – viveu entre duas passagens do cometa Halley. Deixou um baú com cadernos grossos e escurecidos por uma letra cursiva, com as palavras unidas e de fácil leitura.
Quando o meu pai, garoto, também partiu, para Luanda, levou o baú – mala de porão robustecida por folha-de-flandres com motivos vermelhos e negros. O meu pai herdou-o porque foi o primeiro da família a nascer depois da morte do tio Samuel. Nunca lhe deu para ler a papelada. Eu peguei no primeiro caderno aos 7 anos e fui lendo-os (eram 67) pelo liceu fora. Eles estavam divididos por títulos que, quando se prolongavam por vários cadernos, eram numerados, 1, 2, por aí fora…
Eram talvez romances, mas não só. O «Aventuras de Tó das Saias» e o «Aventuras de Humbertinho», cada um com vários cadernos, são os meus preferidos. Não eram o que hoje se chama literatura, eram só historinhas. Hemingway nunca diria deles: «Toda a moderna literatura americana nasce com As Aventuras de Humbertinho», mas, paciência, aqueles livrinhos eram da minha família. Havia ainda uma ficção científica com uma bicicleta na corte do rei Artur, aforismos, uma memória do Mississipi… A recolha de frases, bem apanhadas, faz-me suspeitar que ele viveu um tempo do humorismo. Frases como «não pude ir ao funeral mas escrevi uma carta gentil a dizer que o aprovava» mostravam que os olhos brincalhões eram sinceros.
As histórias não me pareciam inventadas, bastou ao tio Samuel Clemente ter vivido. As aventuras do Tó das Saias – chamou-lhe assim talvez porque o miúdo estava embeiçado pela colega de turma, a Beti – e as do Humbertinho passam-se na cidade de St. Petersburg, no Missouri. Mais tarde, quando inventaram os mapas do Google, eu soube que essa cidade nunca existiu. Afinal, alguma coisa o tio inventou, embora o essencial, não. O Missouri é daqueles estados americanos traçados a esquadro, mas com o Mississipi a fronteira vai ao sabor do rio. Ah, o Mississipi, como ele o viveu! Pé descalço, calças a meia perna, chapéu de palha, cana de pescar, ilhas fluviais, grutas, meios-índios de faca afiada, negros a fugir de jangada para o Norte, o que mais tarde seria para civilizarem o mundo com o jazz, mas no tempo do meu tio era só para fugir ao chicote…
Essas eram as aventuras. Iluminaram-me a infância – à noite, eu ouvia os grilos a sair do baú ou tremia pelo faiscar da faca do índio. Mas deram-me cabo do resto da vida. Soube-o cedo, que me deram cabo da vida. Da primeira vez que o meu pai me levou a ver o portentoso Quanza, emperrei, fiquei de olhos postos na curva do rio, à espera do barco de roda. Eu sabia que viria um, com o meu tio, garoto, à proa a gritar para o piloto: «Marca Duas! Marca Duas!», avisando das duas braças de fundo para navegar. Sei bem do grito, porque o meu tio Samuel Clemente escolheu-o: com esse pseudónimo em inglês, «Mark Twain», assinava os cadernos. Mas o barco de roda nunca espreitou da curva e nesse dia eu soube que não podia ter tudo.
[Publicado originalmente na edição de 12 de abril de 2015]