O génio e a genialidade

Notícias Magazine

Sempre me senti mais próxima das cantoras que assumiam o que eram e não o que outros prefeririam que fossem, o que é o mesmo que dizer que sempre me identifiquei mais com as cantoras que fugiam da norma, por um motivo ou por outro. Podia ser a sua voz, a sua postura, o seu discurso, a sua música ou o conjunto de tudo. Não me interessava ver perfeição. Preferia profundidade e honestidade. Aquelas cantoras que cantavam directamente das entranhas ou da alma ou de ambas.

Poderá parecer irónico que, gostando tanto de ouvir cantar a alma própria, tenha ficado conhecida por cantar a alma dos outros. Mas um dia a alma própria dirá que quer ser cantada e eu obedecerei aos seus comandos. No entanto, não é isso que pretendo discutir. Aquilo que me interessa pensar é a forma como olhamos para o percurso artístico de uma mulher e para o percurso artístico de um homem e os avaliamos.

Uma coisa que sempre me deixou curiosa é que a palavra «génio» é frequentemente utilizada para caracterizar alguns artistas masculinos, mas poucas vezes associada ao feminino. Principalmente se o «génio» é torturado.

Kurt Cobain será a figura que melhor representará na ideia de muitos o artista que, conseguindo criar uma obra que marca profundamente o seu tempo e os tempos vindouros, não consegue gerir a sua própria vida (e genialidade) com sucesso, ingressando num percurso movido a drogas, álcool e outros excessos que levarão à sua morte. Podemos pensar igualmente em Jimi Hendrix ou Jim Morrison.

Do outro lado, encontramos as heroínas (sem qualquer tipo de intenção irónica) Janis Joplin, Amy Winehouse ou Whitney Houston. As suas vidas foram igualmente marcadas quer por excessos quer por uma produção artística que marcou o seu tempo e ainda permanece e permanecerá. No entanto, o rótulo que mais depressa lhes é colado, quando o seu nome é referido, é o do abuso, desvio, como se a sua decadência tivesse sido o castigo merecido pelo atrevimento de terem atingido os mais altos planos de uma carreira artística. Parece haver dois pesos e duas medidas quando se avaliam os méritos artísticos masculinos e femininos e há dois pesos e duas medidas quando se avaliam os seus excessos ou adições.

Muito se tem discutido este assunto nos últimos meses, talvez por culpa daquilo que, inadvertidamente, põem a nu os documentários acerca de Kurt Cobain e Amy Winehouse. Não teria sido necessário vê-los. Lembro-me de quando Kurt Cobain era vivo e de como a imprensa, a indústria e o público já então ressaltavam a tal genialidade e menorizavam os excessos, provenientes de uma alma tão profunda e sensível, que não conseguia aguentar o embate com a realidade dura. A sua morte, uma fatalidade que em nada diminuiu o impacto da sua obra.

E lembro com nitidez a forma como Amy Winehouse foi sistematicamente ridicularizada, menorizada e enxovalhada por fazer exactamente o que Cobain fez: dois álbuns que marcaram a sua época e uma adição a drogas duras que viriam a contribuir para a sua morte. Numa altura em que o tópico da igualdade ou equitatividade de tratamento de género é largamente debatido, não me parece descabido acrescentar mais este ponto de discussão. Até porque parece reflectir precisamente aquilo que se está a discutir: a maneira como se é tratado de forma diferente pela sociedade consoante se é mulher ou homem.

Talvez por intuir a forma desigual e, por isso, injusta, como se avaliava a obra de algumas cantoras, tenha sentido uma inclinação para me sentir mais próxima da sua proposta artística. É que se já é difícil assumirmos quem somos, qualidades e defeitos incluídos, sem reservas, perante o mundo, mais difícil é fazê-lo sendo-se mulher.

A coragem será sempre uma qualidade sedutora. A genialidade, também. Curiosamente, palavras do género feminino.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
2-8-2015