Impulsos para que vos quero?

Muito lhes devemos, mas é-nos quase sempre pedido que os controlemos, sob pena de sermos considerados selvagens ou pouco sãos. Autocensuramo-nos, mas não queremos perder a espontaneidade ou renunciar ao prazer. Há quem diga que «não se pode servir a dois amos», mas, neste caso, é no equilíbrio entre ouvir os impulsos e praticar o autocontrolo que se consegue o melhor de dois mundos.

Um murro na mesa, um beijo apaixonado, a compra de um chocolate e a cleptoma­nia podem ter mais em comum do que se imagina à partida. São, ou podem ser, impulsos. Dos adultos é esperado que os controlem. A bem da civilidade, do deco­ro ou mesmo da saúde. Nem sempre é fácil, mas também nem sempre é útil. Evolutivamente, pelo menos, têm-nos sido benéficos, na luta pela sobrevivência, in­dividual e da espécie.

E, hoje, mesmo sendo os nossos desafios mais so­fisticados do que aqueles que enfrentávamos no tem­po das cavernas, continuam a ser centrais. «São fun­damentais na nossa vida. São os impulsos que nos le­vam a procurar o prazer e, no fundo, a satisfazer as necessidades de foro biológico», diz o psiquiatra Dio­go Guerreiro.

Mas o que são afinal? «Necessidades ou desejos fortes, súbitos, muitas vezes irracionais, que levam a compor­tamentos para os satisfazer de forma imediata, visando uma de duas coisas: a procura de prazer ou o evitamento
de situações de perigo.» É assim que o psiquiatra Diogo Guerreiro define os impulsos, acrescentando que po­dem ser de vários tipos, mas que os sexuais, alimenta­res e agressivos são os mais comuns.

Nenhuma narrativa sobre impulsos pode passar ao lado de Freud, o pai da psicanálise, e da história que muitos de nós se lembrarão vagamente de ter estudado na escola: Freud chamava-lhes pulsões e defendia que nasciam no id, o seu reino no nosso inconsciente, regi­do pelo princípio do prazer, habitado pelo nosso lado menos civilizado e povoado de desejos, sobretudo liga­dos à libido. Nesta história, o ego desempenha o papel de polícia: regido pelo princípio da realidade, é a parte de nós que tenta reprimir aquilo que lhe parece inade­quado. Mas não tudo, é certo. Porque os impulsos são necessários e porque dificilmente há um ego suficientemente grande e zeloso para abafar todos os desejos que moram em nós.

O impulso é inato, o autocontrolo adquirido. Vamo-lo desenvolvendo à medida que se apura a relação de causa-efeito e se estabelece o processo educativo e de socialização. Aprendemos a pensar antes de agir. Os que não aprendem e têm grande insuficiência do controlo de impulsos acabam muitas vezes por cair na patologia psi­quiátrica. «Por várias razões, incluindo a educação, mas também fatores genéticos ou alterações da neurotrans­missão cerebral, pode existir uma perturbação do con­trolo dos impulsos. As mais conhecidas são a cleptoma­nia, a perturbação explosiva intermitente [explosões de raiva e agressividade], o jogo patológico, algumas for­mas de compulsão alimentar ou o controlo dos impulsos sexuais», esclarece Diogo Guerreiro.

E se é verdade que a sexualidade é um terreno on­de se quer mais espontaneidade do que racionalidade, o caso é que sempre que a impulsividade se sobrepõe demasiado à razão acabamos em maus lençóis. Trai­ções, flirts ou casos fortuitos constantes ou mergulhos de cabeça numa relação podem ser exemplos claros da falta de controlo de impulsos. «Apesar de o sexo poder despertar alguns dos instintos mais primitivos, ten­dencialmente a racionalidade continua a sobrepor-se à impulsividade», diz o psicólogo e sexólogo Fernando Mesquita. «É normal cruzarmo-nos com pessoas que nos despertam desejo sexual, mas salvo raras exceções existe a capacidade de controlar esses impulsos e fan­tasias. Quando existe uma incapacidade em perceber a diferença entre o mundo da fantasia e a realidade, sem que se consiga controlar os impulsos, podemos estar perante um problema.»

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A LUTA IMPULSOS VERSUS AUTOCONTROLO é muitas ve­zes um dilema: de um dos lados está o que queremos, do outro também. É uma questão de recompensa e, sobre­tudo, de quando a podemos ter. O impulso oferece-nos uma recompensa imediata, o autocontrolo uma recom­pensa no futuro. Por norma, a recompensa a que tere­mos acesso no futuro é muito maior do que aquela que nos proporciona o imediato: o prazer de comer mais chocolate versus não engordar; o prazer de fumar um cigarro versus não adoecer; o prazer de ter um um caso de uma noite versus manter a relação com a pessoa que amamos. Tudo escolhas que parecem óbvias e lineares, se não introduzimos na equação uma variável que baralha tudo: o tempo. É que não estamos preparados para considerar importantes as recompensas tardias, gosta­mos ter a cenoura em frente do nariz.

Nos seus livros (Previsivelmente Irracional e O Lado Bom da Irracionalidade) e investigações, o economis­ta comportamental Dan Ariely explica-o muito bem: a escolha transforma-se em poder ter uma coisa que nos vai dar prazer agora ou uma que nos vai dar prazer daqui a muito tempo. E, assim como para a nossa vi­são as coisas mais distantes parecem mais pequenas, o mesmo acontece com as recompensas. A distância muda-lhe a proporção: a que está à mão torna-se gi­gante, o mais distante fica pequeno. Por isso, o profes­sor de Duke defende que introduzir uma recompen­sa no imediato pode ser eficaz quando os benefícios da escolha que pensamos ser correta só vão ser senti­dos passado muito tempo. Substituir a perspetiva da recompensa futura por outra, também ela imediata, tornará mais fácil resistir à tentação.

De resto, o próprio Dan Ariely, quando jovem, con­frontado com a necessidade de se submeter a um tra­tamento para a hepatite, usou o método. Cumpriu todo o tratamento (foi o único de todos os participantes no ensaio clínico) porque se recompensava com um filme nos dias em que tinha de dar a si próprio a injeção, que lhe provocava efeitos secundários violentos. E sim, é ri­dículo comparar o prazer de ver um filme com a perspetiva de não morrer demasiado cedo, mas é assim que para nós faz sentido, alega Ariely. «É fazer as pessoas portarem-se da forma certa pela razão erra­da. Mas funciona.»

Precisamos de nos autorregular, mas isso é sempre menos fácil de fazer do que de admitir. E fazê-lo po­de requerer técnicas apuradas. «Um dos aspetos prin­cipais é a motivação, sem ela não há ferramentas que funcionem. E muitas vezes a motivação está associa­da a uma provável “punição” caso não exista autocon­trolo. Por exemplo, muitos compulsivos sexuais pro­curam ajuda quando veem a sua relação conjugal em risco. Nestes casos podemos sugerir que andem sem­pre acompanhados por um objeto com uma simbologia emocional muito forte que os faça recordar da família», defende o sexólogo Fernando Mesquita.

APESAR DE O AUTOCONTROLO ser geralmente visto como sinónimo de força de vontade e poder interior, muitos investigadores defendem que pode ser definido como a manipulação que fazemos do ambiente à volta, de for­ma a alterar o nosso comportamento em função de uma consequência. Porque, segundo vários investigadores, o autocontrolo não é o forte do ser humano. No caminho para o trabalho, juramos que não vamos perder tempo no Facebook, mas quando nos sentamos à secretária é a primeira página que abrimos. Numa saída à noite, pro­metemos que não vamos beber demasiado, mas no fim da noite não temos outro remédio senão chamar um táxi porque não estamos em condições de conduzir. Claro que podemos e devemos tentar encontrar recom­pensas que possam ajudar-nos a fazer o que está certo, ter monólogos interiores para nos relembrarmos das consequências de uma má escolha, mas muitas vezes nada disto é suficiente. E isso tem levado muitos a contar com a tecnologia para se obrigarem a cumprir promes­sas e a ter maior controlo sobre si próprios.

A SelfControl, por exemplo, é uma aplicação grátis através da qual é possível bloquearmos durante um certo período de tempo o nosso próprio acesso aos sites que achamos que nos distraem. Enquanto o tempo estipulado não acabar, será impossível aceder ao que lis­támos como os buracos negros da nossa produtividade: nem apagar a aplicação ou reiniciar o computador re­sulta. Ficamos reféns da escolha que fizemos.

Nos EUA, a tecnologia e o software para nos obrigar­mos a ser pessoas melhores tem vendido como pãezi­nhos quentes: despertadores com rodas que se movem pelo quarto, obrigando-nos mesmo a sair da cama pa­ra os desligar; bloqueadores da ignição do automóvel li­gados a um alcoolímetro que só deixam o carro traba­lhar se estivermos em condições para conduzir; aplica­ções que bloqueiam as chamadas do telemóvel depois de uma noite de copos; software que não permite que o cartão de crédito funcione uma vez atingido um cer­to plafond. Conhecedores da nossa fraqueza, aqueles que somos hoje, agora, longe da tentação, tomam precauções contra o que previsivelmente seremos daqui a pouco ou amanhã, quando nos depararmos com a dita e estivermos prontos a ceder.

Nada disto implica que a espontaneidade seja per­dida ou que não nos deixemos tomar pelos impulsos quando isso faz sentido. Até porque ser excessivamen­te rígido e racionalizar de mais pode ser tão negativo como ser demasiado impulsivo. «Temos de encontrar uma espontaneidade saudável que permite satisfazer a nossa procura por prazer, mas que tem em considera­ção os resultados das nossas ações. E devemos afastar-nos dos extremos», aconselha Diogo Guerreiro. Não se trata de escolher entre uma coisa ou outra, mas antes de saber equilibrá-las e tirar partido de cada uma na al­tura certa. «É como nos carros: o que é melhor, o travão ou o acelerador?»