O caminho da extrema-direita francesa, que culminou esta semana no bom resultado de que todos falam nas eleições regionais em França, não começou há dois dias. Tem anos, nome de família Le Pen, passou de pai – o enrubescido, raivoso, antissemita, anti muitas outras coisas Jean-Marie – para filha –, a loura, assertiva e, no entanto, menos agressiva, Marine. Para mim, começou em 1997, no olhar aterrado de uma menina que se chamava Femida e que eu encontrei, em reportagem, em Vitrolles, uma pequena cidade perto de Marselha, cuja câmara tinha sido ganha, numa estreia absoluta, pela Frente Nacional.
Zona operária por tradição e de imigração magrebina pelas condições geográficas – ali, à beira do Mediterrâneo –, a região de Marselha era já, por essa altura, um barril de pólvora que juntava diferenças de pele, de culturas e de religiões com pobreza, desemprego, criminalidade e insegurança. Quando os problemas são complexos, é tradição da política que se lhes oponha soluções simples. E foi o que fez a Frente Nacional. Usou os imigrantes como bodes expiatórios de todos os males, elegeu-os como inimigos e propôs uma limpeza étnica. A pele de Femida, escura, magrebina de origem berbere, tornava-a num alvo fácil. E ela tinha medo. Encontrei-a na rua, perto da escola onde andava e onde chorara nessa manhã, sobre a vitória dos que punham em risco o seu futuro. De desapontamento, até, porque já não acreditava no slogan que estava no portal da escola – liberdade, igualdade, fraternidade – e que ela achava que era o mote do seu país – já nascera em França.
Alguns meses mais tarde, a câmara tentou passar leis discriminatórias que iam contra a Constituição francesa. A cidade foi repatizada como Vitrolles-en-Provence, uma avenida ganhou o nome de um dirigente do partido morto num acidente de viação e a câmara instituiu um prémio de cinco mil francos às crianças nascidas de pais europeus – esta lei foi vetada pelos tribunais por ser anticonstitucional. Além de uma série de irregularidades financeiras relacionadas com campanhas eleitorais – a Frente Nacional pecou por excesso e acabou por ser escorraçada de Vitrolles. Agora, a sua versão mais suave voltou a ganhar num bairro – grande, de 150 mil eleitores – em Marselha. E quem votou no partido foi mesmo os magrebinos, imigrantes e franceses, os trabalhadores, legais e obedientes à lei, que estão fartos. Fartos, por um lado, dos criminosos que continuam a assolar a cidade e, por outro, dos políticos que nada fazem para os combater.
É fácil de explicar esta mudança. O combustível que nestes quase vinte anos alimentou a chama da Frente Nacional – apesar de tantos argumentos ilógicos e tanto populismo óbvio e bacoco – foi o desprezo e a distância a que as classes dirigentes relegaram o povo, que é a base de apoio de qualquer democracia. Quarenta por cento dos eleitores da direita francesa – a dita democrática – acreditam que os princípios da Frente Nacional se enquadram nos ideais da UMP. A grande maioria dos franceses está desiludida com a classe política, que associa ao elitismo, à corrupção, ao egoísmo e à falta de valores comuns. As medidas de François Hollande não têm surtido efeitos económicos que anulem o amargo de boca de ver um socialista tirar aos pobres mas dar aos ricos (nos impostos, isto é evidente). A abstenção foi a maior de sempre em eleições regionais, que costumam ser das mais participadas – até porque permitem o voto dos imigrantes. Tudo isto faz-vos lembrar alguma coisa?
[Publicado originalmente na edição de 6 de abril de 2014]