Esta polémica das praxes teve um efeito mau em mim. Fez-me sentir velha. Pela primeira vez na vida usei a expressão «No meu tempo…». Até aqui, sempre que essa expressão me vinha à cabeça estava acompanhada pela frase que a Mafalda, a da banda desenhada do Quino, dizia ao pai quando lha ouvia: «Este ainda é o teu tempo, não?» Para responder à Mafalda: não, este não é o meu tempo.
Fiz a faculdade há cerca de vinte anos (não pensavam que ia dizer datas certas, pois não?), estávamos no dealbar das praxes. Estudei na Nova, em Lisboa, FCSH, Ciências da Comunicação. No início dos anos 1990 começavam a aparecer os trajes académicos – embora só se levassem para a bênção das fitas – e os alunos dos segundos anos já organizavam as tais «praxes» para os caloiros. Mas era tudo mais ou menos caótico – é verdade, houve uma eleição de Mr. e Miss Caloiros, mas não havia nenhuma organização formal, nem dux, nem veteranos. Tratávamo-nos todos por tu, e nunca ninguém me «obrigou» a fazer nada. O que ficou na memória foram semanas de borgas e convívio, em que a integração se fazia, sim, mas… digamos… mais pela comunicação interpessoal do que pela humilhação formal. E – já agora, só para esclarecer – apesar de querermos todos ser jornalistas, não era absinto o que bebíamos…
Numa faculdade com fama de ser do contra, mesmo os pequenos rituais começaram a ser vistos como a semente de qualquer coisa, daquilo que pessoas mais atentas percebiam ser estratégias de subordinação – apesar da brincadeira, era o que estava na base das praxes, mesmo as que se limitavam a pintar as caras aos caloiros. Então, na minha faculdade nasceu o MATA – movimento anti-tradição académica, um grupo liderado por jovens do PSR.
Quando saí da Nova, e durante uns bons anos, havia um enorme grafito na parede do edifício da Avenida de Berna que dizia: «MATA – liberta o cabrão [sic] que há em ti, diz não à praxe». Cada vez que penso nisso, hoje, mais acho que essa é a melhor forma de combate a esta coisa impositiva em que a praxe se tornou. A resposta a uma estupidez coletiva tem de ser uma decisão individual. Um não firme dito na cara, e sem medo de represálias. Não pode ser uma resposta legal, nem por decreto. A defesa da tradição académica é sempre feita a coberto dessa suposta pertença a um grupo que a praxe organiza e pelo qual é organizada. É o mesmo funcionamento das seitas, das organizações secretas, dos grupos de interesse. Combatê-la de forma organizada seria usar as mesmas armas. Contra a repressão, só a liberdade funciona. A responsabilidade individual contra a irresponsabilidade coletiva.
Irrita muito a discussão se a praxe é violenta ou não violenta. É, sempre, uma forma de submissão, e deve ser exatamente o contrário disso que queremos dos nossos jovens. Essa liberdade havia «no meu tempo» – sem basófias. Dentro e fora das aulas, professores e alunos cultivavam a crítica – em relação à sociedade de consumo, às tradições, ao que nos era imposto como norma. Muitos vestiam-se de preto, mas era um preto rebelde, não o preto submisso do traje académico. A nossa ideologia era não nos contentarmos, não nos ficarmos. Quando eu andava na faculdade, o que se esperava de um jovem era que fosse do contra. Esse é o sentido da adolescência. Se não se é do contra quando se tem 18, 19 anos, quando é que se vai ser do contra? Quando se estiver encaixado num escritório, com a família dependente do ordenado que se ganha no fim do mês?
[09-02-2014]