É dos produtores de vinho mais considerados do país, apesar de não ter formação em enologia. Dirk Niepoort faz parte da quinta geração de uma família holandesa ligada à produção do vinho do Porto no Douro há mais de século e meio. Há 25 anos provocou o riso e a descrença do pai ao sugerir que produzissem vinhos de mesa de qualidade. O tempo acabou por revelar a qualidade da ideia.
Os socalcos do Douro já ganharam as tonalidades acobreadas de um cálice de tawny, prenunciando o início do outono. Junto aos caminhos, entre Peso da Régua e Folgosa, as videiras tombam para a estrada com o peso das uvas, mas na Quinta de Nápoles, em Armamar, as vindimas estão praticamente terminadas, os lagares cheios, e ainda faltam duas semanas para o final de setembro. Dirk Niepoort antecipou-se às rotinas da apanha da uva no Douro, começando mais cedo do que a grande maioria dos produtores locais. Tem sido assim nos últimos anos. Acredita que, desta forma, consegue maior acidez e frescura, traço característico dos vinhos de mesa da casa Niepoort, respeitando o ciclo de maturação das vinhas velhas e fintando o tempo incerto que condena as uvas a apodrecerem nos cachos.
A decisão sobre a altura da vindima é das mais importantes para um produtor. Algumas características fundamentais de um vinho começam a ser definidas no momento em que se colhe a uva. Os mais cautelosos apoiam-se nas análises, em estudos de PH e de teor alcoólico, deixando à ciência a capacidade de avaliar o nível de maturação ideal – por isso, este ano, na maioria das quintas do Douro, as vindimas só terminaram na última semana de setembro. Mas Dirk não faz parte da maioria. O herdeiro da casa Niepoort, dos dois irmãos aquele que está mais perto da produção diária, encolhe os ombros quando lhe mostram cálculos. «Os números mentem. Resta provar e decidir.» E tem decidido bem, trocando as voltas a enólogos treinados que lhe apontaram erros de avaliação. O puzzle de sabores construído a cada colheita fala por si e a aceitação dos consumidores também.
Dirk Niepoort herdou um nome forte, mas pouco conhecido, na produção de vinho do Porto, quando, em 1987, se juntou ao pai, Rolf, à frente dos negócios da família. Nessa altura, a produção era pequena e a Niepoort uma «marca de nicho, apesar de muito respeitada no setor». Foi com Dirk que a insígnia familiar ganhou novo fôlego, diversificou negócios e chegou a novos mercados.
Cresceu nas caves, entre barricas, a cheirar e a provar os portos feitos pela família, ouvindo desabafos e ensinamentos do senhor José, a terceira geração de provadores da casa Niepoort. Não percebeu, na altura, que o contacto diário com os taninos lhe estaria a moldar o paladar e o futuro e que as palavras ouvidas iriam fermentar e ressoar anos mais tarde, influenciando a forma distinta como encara a produção vitivinícola. A paixão pelo vinho não foi imediata. Estudou no Porto, no Colégio Alemão, seguiu Economia na faculdade e até ao estágio que fez numa distribuidora de vinhos na Suíça, «era apenas o que abria as garrafas e decantava o vinho à mesa». Pouco mais.
Entre Lausanne e Genebra, caiu nas graças do diretor da empresa onde estagiou, que o passou a incluir nas provas e lhe deu a conhecer as novidades. A pouco e pouco, começou a ser seduzido pelo ritual do vinho e a testar os seus padrões de qualidade. Depressa procurou adquirir algum saber teórico que fundamentasse os saberes empíricos que começou a consolidar. Devorou um livro enorme de enologia, recorda, e ficou com vontade de conhecer «os grandes vinhos»: «Foi aí que se deu o clique!»
Na altura, pôs de parte 25 francos do magro salário de estagiário e, ao volante do Citroën dois cavalos, decidiu ir a uma loja próxima para levar para casa uma boa garrafa. Pediu um Château Petrus, de ano impreciso e sem grandes certezas. Os preços variavam, à época, entre os 800 e os mil e duzentos francos (cerca de 120 a 180 euros, ao câmbio atual) – mais do dobro do seu vencimento. Ficou de queixo caído.
Regressou a Portugal um ano e meio depois. Mas a paixão já fervilhava e, por intermédio do pai, seguiu para os EUA. Com 22 anos, iniciou-se a fazer vinho nos vales californianos, onde ganhou tarimba na negociação e começou a repensar o negócio familiar. «O meu primeiro vinho de mesa vai ser um monstro, mas daqui a 25 anos conseguirei criar um que será fino e elegante.» A promessa de Dirk Niepoort, feita nos finais da década de 1980 a um amigo da região vinícola de Napa Valley, nos EUA, foi cumprida. Foi ele que iniciou a família na produção dos vinhos de mesa. À quinta geração, a Niepoort comprou as primeiras vinhas numa zona em que o rio faz barriga e perde velocidade: a Quinta de Nápoles e a Quinta do Carril no Cima Corgo, concelho de Armamar. Por essa altura, foram plantados de novo 15 hectares de vinhas e dez hectares de vinhas com sessenta anos foram cuidadosamente mantidos. Uma cedência do patriarca às novas ideias do filho mais velho, acabado de regressar dos EUA. Até então, o rótulo da casa só tinha sido colocado no mercado em torno das cores rubras e douradas do vinho do Porto. Assim tinha sido gerida a marca nos últimos 150 anos, recebendo vinho de pequenos produtores locais e transformando-o num dos melhores portos do mercado. Uma luta desigual com grandes casas inglesas como Symington, Kopke Taylor, Offleey ou Sandeman.
Dirk teve de enfrentar um pai cético e a falta de dinheiro para fazer o seu primeiro tinto – «um brutamontes», garante, quando comparado com a elegância das garrafas que agora saem da Quinta de Nápoles. Chegou a desenhar as cubas onde as primeiras uvas foram pisadas porque – nas suas palavras – não havia abundância. «Éramos uns ilustres miseráveis.» Feito o vinho, apenas colheu zombaria e descrédito. «Não presta», disse o pai – que ordenou que, das cinco pipas, quatro fossem para beberagem do pessoal. A que sobrou, devidamente engarrafada, ainda hoje lhe dá alegrias. «Mantive algumas garrafas e, há alguns anos, o meu pai voltou a provar o vinho, bebeu a garrafa até ao fim. Foi o melhor elogio que poderia ter recebido.» O tempo deu-lhe razão e, atualmente, os vinhos de mesa representam a maior fatia do volume de negócios da Niepoort.
Dirk está à frente da empresa desde a reforma de Eduard Rudolph Niepoort, em 2005. A manhã ainda não vai a meio e já traz nas gretas dos lábios a negrura das primeiras provas da colheita. Que tal as uvas? «Ótimas, no ponto!», garante a partir do seu porte invulgar. Parece extraído dos gloriosos tempos do Woodstock, mais parecido com um festivaleiro do que com um afamado produtor do Douro: os cachos emaranhados do cabelo, os calções largos cortados abaixo dos joelhos, a camisa salpicada de vinho. Um look invulgar e excêntrico para um comportamento invulgar e excêntrico? Sim, pelo menos aos olhos dos mais académicos. Poucas são as vezes em que não embarca em experiências que deixam qualquer conhecedor de sobrolho levantado. Chama-lhes «as minhas maluqueiras». Agora, anda a tentar empregar alguma filosofia dos vinhos de mesa nos Portos, criando propostas mais suaves.
«Sou um idiota sem formação em enologia», resume, enquanto atalha caminho entre pipas de carvalho da última vindima de 2013. Explica que, à falta de especialização, aprendeu falando com pessoas, viajando e perguntando. O conhecimento de línguas tem-se mostrado fundamental neste processo. Exprime-se com fluência em pelo menos sete idiomas: alemão, português, espanhol, francês, inglês, italiano e romanche. Obsessão que herdou do pai e que tenta incutir nos três filhos. A quinta também é polo de atração para diferentes nacionalidades. Nas vindimas deste ano, trabalhou com 15 estagiários provenientes de países tão distintos como Namíbia, Grécia, Finlândia ou Suíça. E tem dezenas de pessoas em lista de espera de outras tantas origens. «Vêm cá ter por considerarem que este é o produto vinícola mais interessante em Portugal», diz. Mas há outra teoria para tamanho sucesso: Dirk sabe receber. Cozinha para quem se demora no Douro, oferece um lugar à mesa aos que fazem uma visita sem aviso e desaparece a meio da refeição para reaparecer pouco depois com uma garrafa empoeirada destinada a uma prova cega.
Ninguém abandona a Quinta de Nápoles sem perceber a filosofia que está na base dos vinhos da Niepoort. «Simplicidade, frescura, respeito pela natureza, tempo» são as mensagens que transmite a quem o procura, a quem quer aprender com ele, a quem estagia durante as vindimas e trabalha com as suas uvas. Dirk acredita que o sucesso da empresa depende de se saber explicar o que se faz e como se faz, e isso acontece, tantas vezes, entre pratos, passando copos de mão em mão, cheirando e provando, adivinhando origens, castas e sabores.
Todos os anos, enquanto as uvas são cortadas das videiras, Dirk muda-se com a família para a quinta de Nápoles. Durante o resto do ano, o tempo é dividido entre feiras e apresentações internacionais, o Douro e sua residência no Porto. Aos 50 anos, prepara uma nova área de negócio para a empresa. Junto à casa principal da Quinta de Nápoles,começaram a ser plantadas algumas ervas de chá que estão a ser acompanhadas de perto pela mulher, a alemã Nina Gruntkowsk. «O vinho e o chá têm em comum o facto de serem muito exigentes.» Porém, é no Minho – onde já comprou um terreno – que ambiciona expandir a produção. «A planta do chá é uma espécie de camélia, no Minho há camélias, por isso a relação foi óbvia.» Sabe que é um projeto de longo prazo e arranca gargalhadas descrentes quando assegura que a Niepoort será, dentro de vinte cinco anos, tão conhecida pelos chás como pelos seus vinhos. Mais uma vez, o tempo mostrará se Dirk tem ou não tem razão.
CINCO GERAÇÕES
Não se sabe o que levou Franciscus Marius van der Niepoort a rumar com a família ao Douro em meados do século xix. «Uma teoria liga-nos a negócios no setor têxtil», diz Dirk Niepoort. «A outra à exportação de bacalhau.» Esta parece estar afastada porque perto de Hilversum, na Holanda, terra de origem da família, não há registo de comércio de bacalhau. Sem terrenos ou vinhas próprias, Franciscus era comerciante de vinhos do Porto. Morreu em março de 1887, deixando a casa para a segunda geração, já nascida em Portugal. Eduard Jackob tomou conta dos negócios e deu continuidade ao trabalho. Eduard Marius, neto de Franciscus, assumiu as rédeas da empresa em 1912. Cientista hábil e colecionador de livros e selos, estava mais interessado em química, física e mecânica e tentou capacitar desde cedo o filho para o substituir à frente da empresa. Eduard Rudolf entrou para a administração em 1950 e reformou-se em 2005. Dirk garante que tem, até hoje, uma relação de forte confiança com o pai e que partilha com ele as principais decisões estratégicas da empresa.
NEGÓCIOS
A Niepoort é uma empresa 100% familiar, cujo negócio de vinhos está direcionado para nichos de mercado. Não revelam valores, mas a exportação para a Alemanha, a Suíça, a Inglaterra, os EUA e o Benelux representa cerca de 80 por cento da faturação. O ano de 2009 foi o primeiro em que as vendas de vinho de mesa Niepoort ultrapassaram as de vinho do Porto, historicamente a base do negócio da família. Nesse ano, a produção dos vinhos de mesa atingiu 350 mil litros, enquanto o vinho do Porto se ficou por 300 mil. Uma tendência que se tem acentuado nos últimos anos, com a Niepoort a diversificar as regiões de produção do vinho de mesa e apostando no Dão e na Bairrada.