Mundiário de um adicto

Notícias Magazine

Os torneios desceram à aldeia, como sabem. Os melhores cavaleiros vieram terçar armas, a excitação é geral, para ver melhor há quem vá para a torre sineira, os fidalgos têm varandas e nós, os garotos, subimos aos telhados de colmo. Já houve dias com três combates, agora acalmou, nem todos os dias há um e os nossos já foram derrubados. Esperamos todos pelo torneio do próximo domingo, 13, quando se conhecerá, como todos os quatro anos, o cavaleiro campeão. Do que eu gosto mais é das noites quando os velhos se põem a contar as lendas dos torneios antigos.

Este ano os escudeiros têm dado que falar. Apesar de não andarem a galope pelos campos, eles fazem-se notar pelos seus fatos berrantes, de cores elétricas, e paramentos como luvas, estranhas com o calor que faz. Foram muito aplaudidos o Ochoa mexicano, com vários braços como as aranhas, e Navas, da Costa Rica, que parece um magnífico ginete que leva os seus às costas. A mim chamou-me a atenção Manuel Neuer, o que me surpreendeu porque costumo não gostar dos teutónicos. Neuer tem o hábito raro de sair da área grande destinada aos escudeiros e permite-se terçar com os pés os cavaleiros adversários. Numa destas noites de lendas e narrativas, um velho contou a história do colombiano de farta cabeleira René Higuita. Num torneio dos tempos medievais de 1990, numa liça entre a Colômbia e os Camarões, o louco Higuita decidiu avançar com os louros da vitória, uma bola de flores, até ao experimentado cavaleiro camaronês Roger Milla. Este desfeiteou-o e trespassou-o com a lança, mandando a Colômbia de volta para os Andes. Cada vez gosto mais destes contos antigos, dão-me esperança de que ao Neuer aconteça o mesmo que ao antigo Higuita.

O mais velho dos velhos conta até histórias do primeiro dos torneios mundiais, o de 1930, no Uruguai. Antes, justas destas, internacionais, eram nos Jogos Olímpicos. Em 1924, em Paris, os uruguaios levaram José Leandro Andrade, um negro que maravilhou. Até ele, a função dos torneios era prática, visava direito ao goal como a haste hirta de uma lança. Com ele, os europeus começaram a apreciar as verónicas: os cavaleiros avançavam às curvas, desfeiteando os adversários. Aos jornalistas, Andrade explicou, brincando, que se treinava perseguindo galinhas, seguindo-lhes os «esses». Foi publicado, porque às glórias, o que Andrade já era, credita-se tudo. Ele ficou-se por Paris durante uns tempos e em Pigalle, com os seus passos dançarinos, chamavam-lhe Maravilha Negra. Veja-se o ano, só no seguinte, 1925, chegou a Paris Josephine Baker, a dançarina que viria ser conhecida como Vénus Negra, Pérola Negra e Deusa Crioula. Só para dizer: com o uruguaio Andrade a luta dos pés adiantou-se às outras artes no combate ao racismo.

Então, o torneio uruguaio de 1930 foi o fundador, o primeiro Mundial de Futebol. Os da casa cuidaram em receber bem, fize-ram o estádio de Montevideu onde cabia quase todo o país. A justa final calhou ser Uruguai-Argentina, um combate doméstico atravessado pelo rio da Prata. Nos jogos Olímpicos de 1928, em Amesterdão, a final fora a mesma e na noite anterior Carlos Gardel foi ao hotel dos argentinos cantar o tango Dandy. Nesse jo-go olímpico, havia empate, 1-1, até que um uruguaio o desfez (2-1) com o resultado final. O cavaleiro uruguaio Héctor Scarone era conhecido como «el Gardel del fútbol» porque cantava enquanto jogava. Dois anos mais tarde, na noite anterior à final de Montevideu, Carlos Gardel voltou ao hotel dos argentinos e, de novo, cantou o tango Dandy. O resultado foi o mesmo, em dobrado: Uruguai, 4, Argentina, 2. Esta tanguédia para a Argentina, para o Uruguai é a prova de que o grande cantor tinha nascido, afinal, numa vilória uruguaia, Tacuarembó, em vez da francesa Toulouse como pretendem sempre os argentinos.

Para os miúdos da minha aldeia, tangos, trovas ou cantigas de amigo, só nos servem para sugerir fantasmas, maldições e forças ocultas, o que nos faz esbugalhar ainda mais os olhos com estes maravilhosos torneios.

Publicado originalmente na edição de 6 de julho de 2014