O Facebook criou uma etiqueta para colar nos textos fictícios ou irónicos, textos que não dizem exatamente aquilo que parecem dizer. Alguém coloca no Facebook um texto que não é sobre dois mais dois igual a quatro, e automaticamente aparece um carimbo a avisar que aquilo não é bem assim. Não é nada que Herman José já não tivesse inventado. No século passado, ainda não havia Facebook e Mark Zuckerberg era um miúdo ranhoso, o nosso humorista criou uma aplicação (ainda não se chamava assim) que, antes de ele dizer uma piada (mentira, ironia, metáfora), fazia-o levantar as mãos abertas, que rodavam como se elas segurassem uma bola de basquetebol. Ficavam assim avisados os espetadores que as palavras seguintes não eram para ser tomadas a sério. Herman não patenteou o invento e por isso é que ele vai acabar menos rico do que Zuckerberg.
Ao que parece, alguns amigos da onça punham textos no Facebook tirados de publicações humorísticas ou satíricas, enfim, com grande liberdade perante os factos – por exemplo, The Onion, o Inimigo Público lá dos States – e, depois, ficavam à espera de comentários que tratassem esses textos inventivos como pura verdade. Gozados, os ingénuos comentadores queixaram-se ao Facebook. Generoso, como é toda a empresa que faz dinheiro com burros, o Facebook passou-lhes a mão pelo pelo: agora, de cada vez que um texto é irónico leva com este carimbo: «satire». Que, julgo, em inglês quer dizer: «Aqui tratamos os leitores como pedaços de asno.» Certamente repararam, não pus o carimbo «sátira» em cima da frase anterior. É que eu não preciso. Os meus textos são publicados, por contrato, com uma aplicação que eu inventei e é impressa de forma a que só os burros possam ler. Diz, apagando e acendendo (é uma etiqueta caríssima): «Isto não é para burros!»
Mais óbvia e barata, a etiqueta do Facebook vai levar a um retrocesso no bom relacionamento entre o texto e o leitor. Dou um exemplo para me explicar melhor (não que menospreze o entendimento do leitor, mas o assunto é delicado). Conhece-se aquele episódio que levou os jornais a anunciar prematuramente a morte do escritor americano Mark Twain. Então, este enviou a célebre carta ao New York Journal (esse, não o NY Times), a 2 de junho de 1897: «A notícia da minha morte foi um exagero.» Ora, a esse desmentido não foi pespegado o tal carimbo «satire». O NY Journal tomou como boa a hipótese dos seus leitores, sabendo que Twain se dera ao trabalho de escrever ao jornal, não estava morto. Houve, primeiro, a notícia da morte, e posteriormente o desmentido do próprio – o jornal confiou no leitor, convencido de que este seria capaz de chegar à boa conclusão por si mesmo. Há dias, tendo eu visitado uma história que apareceu no Diário de Notícias em 1930 – a morte encenada do mago Aleister Crowley, amigo de Fernando Pessoa, na Boca do Inferno –, dei-me conta de que o poeta escrevera ao crítico e seu futuro biógrafo João Gaspar Simões, isto: «Crowley, que depois de se suicidar foi para a Alemanha, escreveu-me há dias.» Pessoa escreveu isso sem carimbo ou duas mãos à volta de uma bola invisível de basquetebol. O meu sonho foi ver o leitor sempre tratado nos jornais como Pessoa tratava um intelectual de gabarito – capaz de compreender a ironia.
É evidente que a etiqueta «satire» é o precedente de uma avalancha de avisos e carimbos pretendendo pastorear o povo. Um pouco como aqueles repórteres televisivos à porta do hemiciclo que ouvem do político: «Não vou comentar nada!», e se viram para nós explicando que o político disse que não ia comentar nada. À etiqueta «sátira» seguir-se-á «mentira», «meia-verdade» e por aí fora. Não vejo quem possa ganhar com isso, exceto os torcionários. Depois de interrogarem o preso, já podem passar as declarações dele no teste do Facebook. Se a Inquisição já o tivesse, teria sabido que o «E pur si muove!» de Galileu era a única parte da confissão que não era ironia.
Publicado originalmente a 24 de agosto de 2014