1.
Este jogo trágico de ser sempre possível cair, a qualquer momento, para dentro de um canhão ou de um poço.
Podes ir pela esquerda ou pela direita, saltar ou parar, tropeçar ou acelerar, mas no fim todo o vivo terminará dentro de um outro espaço. A morte é, além de tudo o mais, uma concreta mudança espacial do corpo. O corpo – o corpo mesmo – vai daqui para outro lado, para um outro compartimento.
«Ninguém morre na véspera.»
É sempre um dia certo
2.
Lâmina que corta fatias de tempo e não de espaço. É fácil cortar ao meio algo que ocupa espaço; outra velocidade, digamos, é exigida a quem corta ao meio o tempo. Cortar ao meio, por exemplo, um segundo: meio segundo para cada lado; meio segundo para trás, meio segundo para a frente – não é fácil.
Há exactidão no espaço e há exactidão no tempo.
Ter pontaria: exactidão no espaço.
Falhar, mas no momento certo – exactidão no tempo, inexactidão no espaço.
Acertar no alvo e no momento certo – exactidão no espaço e no tempo.
Definição de desastrado, em geral e em particular: consegue falhar o alvo e o momento. Os dois.
3.
Eis uma síntese popular:
«Galinha tem muita cor, mas todo o ovo é branco.»
Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Publicado originalmente na edição de 17 de agosto de 2014