Dar a conhecer os rostos da guerra

Notícias Magazine

No outro dia fui jantar com a minha amiga Alla. O empre­gado do restaurante, solícito e curioso como é raro, percebeu que ela era ucraniana e começou a bombardeá-la com perguntas sobre o país. «Oh, vocês não sabem nada», respondeu ela com um ar de enfado que me obrigou a intervir, para que não parecesse malcria­do. Ela própria, há 14 anos em Portugal, percebeu o erro e explicou–se. «É que nem os ucranianos conhecem a sua história…»

Eu, da Ucrânia, sei a história que a Alla me mostrou quan­do, há doze anos, a acompanhei, com a sua família, numa viagem de regresso ao país de onde emigrara. Foi para uma reportagem que fiz na revista do Expresso. Alla fora professora de música – na espe­cialidade acordeão – no conservatório de Lutsk, cidade próxima da Polónia. Vitaly, o marido, fora engenheiro, mas a sua paixão era o jornalismo de rádio. O filho, Bogdan, era um menino, pequenino e vivo, que falava tão bem português como ucraniano e era muitas vezes o tradutor para as nossas insuficiências de linguagem.

Todos estavam felizes em Portugal – país que encontra­ram acolhedor e em pleno boom económico, por contraste com a po­breza da pátria, que, entretanto, tinha evoluído para dureza: lembro–me do choque de Vitaly quando as pessoas não lhe pediam desculpa quando lhe davam encontrões no metro e de ninguém lhe sorrir na rua. E era preciso ter em conta que esta era a Ucrânia do alívio pós–soviético, numa zona onde a influência russa se divide entre o senti­mento de pertença dos mais velhos – a mãe de Alla é pró-russa – e a raiva dos mais novos – Vitaly, por exemplo, recusava-se a dizer se­quer obrigado em russo, e não parava de lembrar que a mãe morrera por sequelas de Chernobyl.

À Ucrânia pós-soviética chegou o conforto das remes­sas emigrantes de Portugal, o dinheiro que comprou a primeira TV a cores e um sofá de veludo que ocupava quase metade da sala da mãe de Alla, ex-cozinheira de um restaurante oficial que agora vivia praticamente sozinha, desde a partida da filha e da fa­mília. Mas esta não era gente para se queixar. Era gente habitua­da. A quê? A tudo, parecia. Depois de uma viagem que se tornou praticamente íntima, em que uma jornalista ficou embedded na vi­da de uma família – dentro das suas contradições, dores, raivas, alegrias, amores e preferências – os Litkovets não podiam senão tornar-se meus amigos. E assim fui acompanhando a tristeza do­ce do Vitaly, que nunca se habituou ao seu trabalho duro de plan­cheur em Portugal, lavando panelas num restaurante, e aliviava o stress lendo literatura. O crescimento de Bogdan, que, aos olhos da mãe, se tornou demasiado português, algo que ela associava a «adorrrrrmecido», quando não «morto»… Isto depois de uma bre­ve passagem no ensino ucraniano que correu mal, por causa da exigência dos professores em que um filho de emigrantes, portan­to rico, lhes pagasse luvas pelas notas mais altas.

E a força de Alla, que continua a dar dias e é apenas pro­fessora de música em part-time. «Não chega!», diz-me, sem vaida­des. A Alla que adora ler jornais e revistas, e livros, e anda sempre a descobrir artigos em que os portugueses são analisados para descobrir pequenas críticas que coincidam com as dela. A Alla que já não sai de Portugal, apesar de, agora, viver com a cabeça em Kiev, onde está o filho mais velho nas trincheiras antirrussas. A Alla-fortaleza que todos os dias acorda a pensar que a guerra já começou e liga a TV em pânico. A Alla que pensava que nada mais lhe ia acontecer. A Alla que confiou no devir e no fim da história. Na Europa e que a viu a virar-lhe as costas. A Alla que aparece na página 36 da reportagem do Ricardo J. Rodrigues e que foi o seu mote. Porque saber que a guerra tem rostos, mostrar esses rostos, esse é o papel do jornalismo que aqui fazemos.

[Publicado originalmente na edição de 27 de abril de 2014]