Entrámos nesta crise como costumam fazer os Fittipaldis – perdoem-me o anacronismo – do asfalto. Fazem-se à curva a acelerar e a derrapar, e depois travam quando quase perderam o controlo do volante. Assim estávamos nós, na euforia da velocidade, da modernidade, quando fomos travados a fundo. Essa sensação de que éramos os melhores condutores do mundo tinha as suas partes boas: a adrenalina a bombar acelerava-nos, a excitação tomava conta do nosso pensamento e da nossa criatividade e dava-nos muita vontade de fazer coisas. Mas também tinha partes más: a adrenalina fazia-nos esquecer a realidade, a excitação dava-nos um convencimento infundado.
No final da curva estava à nossa espera a polícia – aliás, à entrada dela já lá estava instalado o radar, nós é que não o tínhamos visto. Vamos sair da crise não apenas mais modestos, as sanções foram grandes demais para deixarem apenas essa leve marca. Já atingimos o ponto do amarfanhamento. Colocando-nos outra vez como os Fittipaldis do asfalto, estaremos por esta altura a duvidar de que consigamos sequer conduzir um carro.
Porque a polícia que nos multou não pôs em causa apenas a nossa velocidade. Foi-nos ao âmago, atacou-nos a personalidade. A polícia que nos aplicou as sanções desta austeridade – que se transformou em causa e consequência da crise – não se limitou a usar números. Atirou-nos com ideias. Ideologias. E a mais forte delas foi a de que tínhamos até aí vivido acima das nossas possibilidades e precisávamos de uma certa moralização. Daí a metáfora de Fittipaldi aplicar–se tão bem. Ficou por dissecar esta ideia, encontrar-lhe causas, explicar que não nascera de geração espontânea e, sobretudo, que não éramos esses tontos que parecíamos nos discursos dos políticos.
A reportagem que publicamos esta semana sobre pessoas que colecionam cupões e descontos vem neste sentido de explicar como os últimos tempos nos mudaram. É uma daquelas que nos dão sentido à função de ser jornalista. Contando uma estória, dá conta da História. O que nos contaram essas pessoas é que notaram uma diferença enorme nos últimos anos. Dantes eram tratados como maluquinhos – nas palavras deles. Na caixa do supermercado sacavam dos talões que lhes davam uns cêntimos nos refrigerantes ou dois quilos de maçãs pelo preço de um e eram olhados de lado por toda a gente, por vezes até levaram com o sorrisinho irónico do próprio operador da caixa.
Em Portugal nunca existiu a cultura da pechincha que, para dar um exemplo conhecido, sempre houve nos Estados Unidos, onde os saldos são um acontecimento, os empregados das lojas nos dirigem para as promoções, conseguir um desconto é um feito digno de contar aos amigos e, sem chegar ao hábito do regatear, é normal pedir-se uma redução de preço se se verificou algum defeito, seja no produto seja no atendimento. O que as personagens desta reportagem notam é que isso já chegou a Portugal também. Por exemplo, já ninguém os olha como seres estranhos quando sacam dos papelinhos de desconto.
Se alguma vantagem terá tido esta crise, poderá ser essa mudança de hábitos. A de poupar sem vergonha. A de não escolher o caro quando se pode ter o barato. Ou seja, aparentemente assimilámos bem a mensagem de que andávamos a gastar demais. Mas o que dizer, então, quando é a própria polícia da austeridade – i.e., o governo – que nos oferece carros de luxo como prémio de pedirmos faturas? Que ideia transmite à sociedade dar um carro de luxo como prémio? Não um desconto nos impostos, ou em prol de um objetivo maior, mas um bem de consumo… E, ainda por cima, um que se tornou o símbolo de que teremos vivido acima das nossas possibilidades. Pois… Provavelmente diz-nos que não tarda nada estaremos todos outra vez a acelerar nas curvas.
[16-02-2014]