Ele é uma autoridade na criação de hortas urbanas e, na semana passada, lançou em Portugal o livro Uma Horta Para Ser Feliz. Marc Estévez Casabosch, catalão de Barcelona, recupera saberes antigos e diz que a auto-alimentação é possível com 15 minutos de trabalho diário. E isso não é só o caminho para uma vida saudável, é toda uma ideologia.
Estreou-se a semana passada em português com Uma Horta Para Ser Feliz [ed. Arte Plural], mas é autor de uma boa uma dezena de livros em espanhol. Especialista em horticultura e cogumelos, é uma autoridade em tudo o que tenha a ver com auto-alimentação. Nasceu e cresceu em Barcelona e só começou a cultivar aos 20 anos, quando se mudou para os Pirenéus. Tem 32 anos, uma mulher e um filho e tudo o que os três comem é fruto dos 15 minutos diários que Marc dedica à horta. O resto do tempo, além dos livros, dedica-os a conferências, workshops e seminários.
Foi conversa à volta de uma bruschetta de cogumelos com ovo, debaixo de um telheiro, em dia de chuva. Marc Estévez Casabosch é um tipo falador, para dar cabo do almoço demorou uma boa hora. Quando chegou à Casa Independente, um restaurante que também é bar e sala de concertos no bairro lisboeta do Intendente, reparou logo na horta instalada no terraço. Cidreira, lavanda, menta, estragão, tomilho, orégãos, caril e manjericão, dispostos verticalmente em vasos e assentes numa estrutura de madeira. E de repente disse: «Há bocado vi uma embalagem de rúcula à venda por um euro e meio no supermercado. Mas, no jardim em frente, havia rúcula por toda a parte. Só que, como não está embalada, ninguém a reconhece.»
Há cada vez mais hortas nas varandas mas também há cada vez mais hortas nas margens das estradas e das linhas de comboio. Cultivar alimentos nos meios urbanos é uma moda ou uma resposta à necessidade alimentar?
Um pouco de ambas. Estamos num momento de crise económica, mas não se pode dizer que as populações estejam em situação de fome real. As hortas urbanas são projetos criativos que não respondem propriamente à necessidade de nos alimentarmos, mas sim à vontade de nos alimentarmos bem.
Porque a comida barata é de má qualidade?
Exatamente. Um hambúrguer cheio de hormonas é mais barato do que uma sopa. Se vais comprar algo com o rótulo de biológico, ainda mais caro pagas. A boa alimentação, e não apenas a alimentação, devia ser um direito fundamental da humanidade.
Segundo o Eurostat, o preço da comida aumentou 4,3 por cento nos últimos quatro anos, mas o dos vegetais subiu 9,9 pontos. A alimentação está mais cara, mas os produtos hortícolas estão ainda mais caros.
A produção industrial de carne e cereais criou um problema terrível de dependência das proteínas. Estamos a ser empurrados pelas grandes corporações para comer proteínas de que não precisamos. Graças a isso, temos taxas de obesidade escandalosas em países como Portugal e Espanha, que nas gerações anteriores tinham uma dieta mediterrânica e saudável. Hoje estamos finalmente a acordar para o problema da alimentação, sobretudo nas escolas, onde começa a haver um esforço de servir refeições saudáveis às crianças. Mas é preciso uma dinâmica social maior em relação à alimentação, porque comer saudável também é um ato de resistência às grandes corporações.
A responsabilidade de destruição da dieta mediterrânica é só das grandes corporações? A política agrícola europeia e condicionou e muito a produção agrícola – e piscatória, já agora – dos países do Sul.
Em termos alimentares, a União Europeia tem uma política absolutamente colonialista com os países do Sul. E fá-lo, não tenhamos dúvidas, para proteger as grandes corporações. A indústria alimentar está pressionada pelas indústrias química e farmacêutica – os proprietários são muitas vezes os mesmos -, que exercem uma pressão enorme sobre os agentes políticos para que os consumidores comam o que as corporações querem. E por isso estamos a ser alvo de uma dieta de proteínas produzidas de forma massiva e até os vegetais são alterados. Aos poucos, estamos a ser envenenados, para sermos forçados a comprar medicamentos. As políticas de alimentação estão pensadas para toda a gente ter garantias mínimas de saúde e, ao mesmo tempo, ir ficando doente.
Mas há cada vez mais produtos biológicos nos supermercados. Não se pode dizer que cultivarmos a nossa própria comida seja a única solução.
Sim, há corredores inteiros de produtos biológicos nos supermercados. Mas são embalados em plástico e produzidos pelas mesmas pessoas que cultivam os vegetais cheios de químicos, ou alterados geneticamente. Simplesmente criam nas mesmas quintas áreas de cultivo em que abdicam de alguns químicos. Mas usam solos contaminados, continuam a produzir em série e cobram três vezes mais. Eu não gosto do nome «agricultura biológica», porque é um conceito mercantil. Aquilo a que deveríamos dar nome era aos produtos envenenados e transformados, não aos naturais. A solução para uma alimentação saudável é cultivarmos os nossos próprios produtos.
Acredita que um dia todos teremos a nossa própria horta?
Se alguma coisa este milénio nos está a mostrar é a consciência coletiva de que podemos tomar as nossas próprias decisões. Estamos a assistir como nunca antes a um tempo de desobediência civil, em que as populações põem de facto em causa o que as instituições lhes dizem que é obrigatório. Não sei se vamos ter todos uma horta, mas que esta tendência vai continuar a crescer, vai. De certeza.
E os restaurantes, por exemplo? Em Portugal temos instituições como a ASAE, que padronizam o que comemos e como comemos.
É a tendência dos últimos anos, e tem a ver com o que eu dizia sobre as corporações farmacêuticas. Estamos em pleno processo de higienização, criamos ambientes cada vez mais assépticos e cada vez mais iguais uns aos outros. E por isso estamos cada vez menos resistentes. Por exemplo, há hoje na Europa Ocidental um índice de alergias muito maior do que há dez anos. Os restaurantes com estrelas Michellin desobedecem: têm normalmente a sua própria horta ou, pelo menos, cultivam ervas aromáticas. Penso que a generalidade dos restaurantes acabará por fazer o mesmo, com o tempo.
As estatísticas dizem que a população mundial é cada vez mais urbana. Isso não põe em causa a ideia de uma sociedade auto-alimentada?
Temos de ver aqui dois pontos. O primeiro é que são sobretudo as populações dos países subdesenvolvidos que estão a mudar-se para as cidades. A tendência no Ocidente é de um certo retorno ao campo. As cidades desnaturalizam as pessoas e o apelo do campo é tremendo nas populações urbanas. Eu, por exemplo, cresci em Barcelona e mudei-me para os Pirenéus aos 20 anos. Penso que no futuro haverá uma distribuição demográfica mais equilibrada. Será lento, mas vai acontecer. Barcelona tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Acredito que, em 2100, poderá ter 2,5 milhões.
E o segundo ponto?
Se olharmos para o passado vemos que a polis romana era uma comunidade auto-suficiente, capaz de alimentar os seus cidadãos. É preciso regressar a esta ideia das comunidades com autonomia alimentar. A solução, além de cada um ter a sua horta, é criar parques urbanos agrícolas na periferia das cidades, que afinal são as zonas com maiores problemas de nutrição.
A vida nas cidades é muito mais agitada do que no campo. Quantas pessoas têm tempo para se dedicar a uma horta?
Não precisas de gastar mais de 15 minutos por dia para ser auto-suficiente em termos alimentares. Se eu demorasse três horas por dia a cuidar da minha horta há muito que a teria abandonado. E tudo o que como sou eu que cultivo. Tenho galinhas e, quando me apetece peixe, vou pescar ao fim de semana.
O livro tem uma parte dedicada às fases da lua. Há uma astrologia aplicável às hortas?
Astrologia não, astronomia sim. Tem a ver com a biodinâmica, como as marés. Se eu cultivar as sementes quando a lua está em quarto crescente, vou ter uma melhor produção.
Mesmo se plantar morangos em dezembro?
[Risos] Não, isso não. Ter uma horta também é um ato de respeito pela sazonalidade dos produtos. O nosso corpo não está preparado para comer morangos em dezembro. Há uma predisposição genética das populações de cada região do mundo para assimilar diferentes alimentos em diferentes períodos do ano. Essa é mais uma agressão que a produção industrial de comida provoca. Se respeitarmos o ciclo da energia da Terra, vamos seguramente viver melhor.