Chega de D. Leonores!

Notícias Magazine

A revista francesa de livros Lire dedicou a sua última edição à rentrée literária, uma especialidade francesa que remete as novidades para o princípio do outono na mira dos prémios lá para o fim. Neste ano, a Lire deu-se conta de um pujante género: ficção, pura ficção, mas metendo no enredo gente real e famosa. Ou melhor, está a tornar-se moda aquilo que era mera tendência, embora já tivesse dado prémios literários: em 2011, o Femina galardoou o Jayne Mansfield 1967, de Simon Liberati, um romance sobre o Buick descapotável que se espetou nas traseiras de um camião e matou a loira sex-symbol de Hollywood, num horror de cérebro desfeito, cabeleiras escalpelizadas, caniches no asfalto e os três filhos no banco de trás, salvos (podemos ver ainda hoje a menina, Mariska Hargitay, que tinha então 3 anos, na série televisiva Lei & Ordem: Unidade Especial, onde faz da detetive Olivia Benson). E, reparem, Liberati limitou-se a contar os minutos finais de uma mulher que podia ser resumida por uma frase sua: «Se tens mesmo de fazer uma coisa errada, faz em grande.» Grande cérebro (QI de 164, quando a partir de 140 é-se génio) e grande peito (101 cm) que expunha para impressionar até a Sophia Loren (há foto), ao serviço de uma vida exagerada em amantes, espetáculos bizarros e drama – cinco anos antes do Buick, já Jayne Mansfield fora dada como morta, comida por tubarões nas Caraíbas.

Detive-me na famosa loura porque ela explica a tal moda de romances bebendo nas vidas reais de famosos. Diz a Lire que Fréderic Beigbeder escreveu Oona & Salinger, sobre um amor juvenil da filha do poeta Eugene O’Neill e que se tornará mulher de Chaplin, e aquele, Jerome David Salinger, que se prepara para ser o maior romancista americano de um livro só, Uma Agulha no Palheiro (The Catcher in the Rye). Há, entre muitos, também um romance sobre o «rei» (Bye Bye Elvis), um sobre Stephen King, mais outro sobre Salinger (se o americano escreveu pouco, escreva-se sobre ele), e sobre o desastre de aviação nos Açores, Constellation, com Marcel Cerdan, o boxeur amor de Edith Piaf, lá dentro… Resume a revista o isco que isto é para os autores: «Que mais romanesco há que a glória e os excessos?»

Nós, leitores, podemos folhear com expetativa legítima. Questão de estilo, seremos certamente bem servidos por Beigbeder, como fomos com Simon Liberati, outros são melões a abrir. Mas não é sempre assim? Agora o que podemos ter por garantido é que as histórias têm condições para ser melhores – o baú onde os escritores vão inspirar-se é inesgotável e pormenorizado. A desvantagem é que o romancista vai ter de abdicar um poucochinho do poder de Deus todo-poderoso, esse que Pessoa (James Joyce podia ser outro exemplo) tinha todo, e indo da modorra da Praça do Município para o quieto Terreiro do Paço, cada dia, todo o dia, criou tanto mundo que precisou de criar também companheiros criadores. Mas criar tudo do princípio, não é só que também cansa, exige génio. Por isso é acertado que Beigbeder meta Oona e Salinger, Chaplin, Hemingway e Orson Welles, na convicção de que aqueles (nós) que lhe vão receber os personagens já os têm com contornos e profundidade, de tanto terem ouvido falar deles. Se tais personagens fantásticos forem cosidos e cozidos com talento, há probabilidade de termos bons romances.

Sempre é melhor do que os falhados romances históricos das fornadas sucessivas do movimento editorial português. Não dominando os costumes, as gentes e as épocas descritas, o nosso escritor-tipo, em vez de pequeno deus, é escultor tosco de rainhas ridículas e heróis inverosímeis, acrescentando a esse material pobre uma manifesta insuficiência na arte da escrita. À luz do que a Lire anuncia, não sei se não seria prudente acabar de vez com títulos sobre a rainha D. Leonor, e os nossos novos romancistas, de temas muito antigos, passarem para antigos quanto basta. O duelo de microfones, anos 1960, entre Madalena Iglésias e Simone de Oliveira, é só uma sugestão, merecia mais a atenção.

 

Publicado originalmente a 28 de setembro de 2014.