A versão dos desafogados

Notícias Magazine

O cronista brasileiro Luis Fernando Verissimo, um rapaz do meu tempo, é filho de um rapaz do meu tempo, o escritor Érico Verissimo. E com isto quero dizer que não nos devemos enganar com a forma coloquial da prosa do primeiro, autor dos diálogos mais fluentes na escrita da língua portuguesa – ele, Luis Fernando, apesar de escrever tão levezinho que leva ao sorriso prazeroso, bebe na visão do seu pai. Érico, apesar do título do seu romance mais famoso Olhai os Lírios do Campo, escreve sempre com o desgosto do seu último livro, Incidente em Antares, que conta o Brasil através dum cemitério com os coveiros em greve. Rapazes dos meu tempo, dizia eu, porque, somados, os dois atra­vessaram o século XX e este não foi bom de assistir. Se tivermos em conta a forma superlativa com que ambos assinam, Verissimo, é de temer um mundo assim. O único desconto que podemos dar é a ausência do acento.

Luis Fernando Verissimo, lembro, é o autor da crónica A Versão dos Afogados (publicada em 1995), que acabou por dar o tí­tulo a uma das suas coletâneas. Ora, A Versão dos Afogados é o cinis­mo a atacar um belo mito brasileiro. Como se diz no início da cró­nica, «os pescadores, surfista e outros seres marinhos» propagaram a ideia de que os botos são salvadores. Botos são os golfinhos, aque­les seres amáveis que fazem a delícia e a receita dos aquários mun­diais. No Brasil gozam da fama de salvarem afogados. Mais corre­tamente, quase afogados – se testemunham é porque foram salvos. É esse o ponto do jovem Verissmo (faz 78 anos, no mês que vem): o que se conta vem só dos felizes salvados. Não seria prudente conhecer também a versão dos afogados? Como estes já não con­tam nem podem contar, o cronista adianta a sua tese: quem diz que os botos só empurram para a praia? Se calhar empurram também para o alto mar, mas disso ninguém fala. Se calhar, estatisticamen­te, os queridos golfinhos matam mais do que salvam…

Aproveito essa visão distorcida de atacar as boas notí­cias para tentar o efeito contrário. É que se o século XX não foi flor que se cheire, este que se lhe seguiu consegue ser muito pior. Tudo desesperante, até as boas notícias – cai um ditador árabe e o que vem a seguir são matilhas raivosas islâmicas… Por estes dias do que nós precisamos, talvez, é de candura, como a de Cândido, ou o Otimismo. Fazer como Voltaire, que pôs Cândido a passear pelo mundo, incluindo Lisboa destruída pelo terramoto, acredi­tando no que lhe dizia o tutor Pangloss: «Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis…» Os noticiários são tão horríveis que nos apetece correr para a praia ver golfinhos a salvar afoga­dos. Veja só o que quer ver. A elegância daquele rapaz atrás do jornalista que ia ser degolado, o turbante, a túnica e a calça larga, tudo num tom preto que torna o corpo mais esguio…

Dias depois de o jornalista americano James Foley ter sido assassinado por um adepto do Estado Islâmico, um seu com­patriota, Douglas McArthur McCain, de 33 anos, morreu a com­bater pelo Estado Islâmico. Este grupo corta pescoços e exibe as cabeças na Internet (se a morte de Foley foi narrada com a lenti­dão de uma navalha mal afiada, dezenas de outras cabeças são mostradas já depois da obra feita) e, continuando com as glórias do Estado Islâmico, rapta mulheres e garotas yazides, povo do noroeste do Iraque, para as violar. Pois a cadeia televisiva ameri­cana NBC, já depois do assassínio de Foley, não encontrou melhor forma de contar Douglas McArthur McCain do que ir entrevistar os colegas que o conheceram, do liceu ao trabalho: um tipo aberto, sorridente e bom jogador de basquetebol… Candura, pois. Ou a versão dos desafogados.

Pedindo desculpa aos golfinhos por os arrastar para esta história, só nos daremos conta do que nos acontece quando um boto nos empurrar para o alto mar. Ou uma figura elegante e esguia nos mandar ajoelhar.

Publicado originalmente na edição de 31 de agosto de 2014