Vida emplastrada

Notícias Magazine

«Não deixe que o seu corpo seja um obstáculo», é o que diz o slogan de uma campanha a um emplastro para as dores musculares. Fiquei a pensar que a afirmação era um slogan perfeito para definir o que é a vida e as suas implicações. Ou seja, mesmo sabendo que a frase se referia a dores musculares impeditivas do normal funcionamento do corpo que se resolviam pela administração do dito emplastro, não consegui deixar de pensar que poderia ser uma descrição bastante exacta das exigências que o ritmo de vida moderno nos impõe e, mais precisamente, das exigências físicas e psicológicas que acabamos por nos impor, para que possamos acompanhar o seu ritmo frenético.

Há muitas coisas a fazer, poucas horas para as fazer e muita vontade de fazer cada vez mais. Metemo-nos num avião e em poucas horas estamos num fuso horário diferente. Num sítio diferente, a respirar um ar diferente. Porque temos tantas coisas a fazer, quer vamos em trabalho ou em lazer, não damos muito tempo aos nossos corpos para se habituarem à diferença. O jet lag é apenas um cansaço irritante que tentamos a todo o custo contrariar, porque há milhares de coisas a fazer e pouco tempo para as cumprir. Passamos horas sentados, quietos, pendurados no ar, na expectativa de contacto com o solo. Mal o tocamos, começamos a correr, desenfreadamente. Uma suspensão temporária da vida que é retomada mal se aterra. Fingimos sempre ter vivido ali, para que o corpo acredite.

Em casa, comemos morangos em Fevereiro, tangerinas em Junho e tudo o que nos apeteça, independentemente de cumprir a sua sazonalidade ou não. O corpo lá terá de se adaptar aos apetites da mente e ir contra a sua lei. Num dia é Verão, noutro, Inverno, conforme o que se ponha no prato. Uma espécie de jet lag sem sair do mesmo sítio.

A internet concede-nos vidas para lá da vida que levamos. Concede-nos a vida que imaginamos. Passamos horas a fazer coisas, ocupadíssimos, e, no entanto, não andámos 1 metro que fosse. Tudo foi vivido connosco sentados, dobrados sobre o computador, encarquilhados, mirrados. Palmilhamos quilómetros virtuais e os nossos pés bocejam de enfado, aninhados um no outro no sofá da sala. Precisamos de sair por algum motivo, logo agarramos as chaves do carro. Ou o passe do autocarro. Ver vistas, só da janela de um veículo em movimento.

Não há tempo, há muito a fazer. Muito afazer. Dizem que quem não se ocupe plenamente está out. O currículo tem de mostrar actividade, multifacetamento. Timidamente, o nosso corpo começa a avisar-nos que nem sempre pode acompanhar o ritmo dos nossos currículos. O sorriso começa a desvanecer-se, substituído por um esgar próprio de quem corre muito e o passo é cada vez menos lesto e mais trôpego. Até que pára tudo. O corpo chegou ao seu limite. Chegou ao seu limite? Não faz mal. Há um emplastro para tudo. Até para que o corpo deixe de ser um obstáculo a esta vivência que o contraria, que o subjuga, que o desafia constantemente e que o engana, sempre. “Não deixe que o seu corpo seja um obstáculo a uma vida plena de acção e excitação, de produção e evolução. Uma vida sem estes predicados equivale a uma vida que não cumpre os requisitos básicos. Dar ouvidos ao seu corpo e dar-lhe tempo para se regenerar? Isso é conversa de indolentes”. A indolência é um atrevido pecado capital que nos leva a pensar longamente se sequer vale a pena o esforço. Mude-se o slogan: Sem corpo torna-se difícil viver. Não deixe que o seu emplastro seja um obstáculo.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[27-10-2013]