A mais velha professora de yoga em Portugal tem 92 anos

E pratica há setenta. E dá aulas há mais de cinquenta. Mas essa não é a única razão pela qual a vida de Clotilde Ferreira dava um filme, ou vários. Não tem livros, nem estátuas, nem fotografias antigas para mostrar. Diz que é o que é, não o que foi um dia – por isso desapegou-se de tudo. Menos da vida.

Diante do círculo de alunos sentados no chão ao som de taças tibetanas, onze almas tranquilas desejosas de aprender, Clotilde Ferreira está no sétimo céu. Que melhor forma de começar o dia do que trabalhando a coluna cervical, as pernas, os chakras, a inspirar e subir os braços, captando energia com as mãos? Ou passar da postura de mesa yoga, de gatas, à montanha de pé, respirando e alongando como se fossem tocar no teto? O que quer que seja preciso fazer na aula – borboletas, pinças, cobras, arcos, tartarugas, meias-luas, saudação ao sol –, Clô pode tudo, ainda capaz de se dobrar e torcer como uma erva aos 92 anos, enquanto os mais novos reclamam do esforço. É ela a mais antiga professora de yoga no ativo em Portugal, uma espécie de oitava maravilha, pequena e enxuta. Os alunos garantem que os faz descobrir músculos que desconheciam possuir, ao passo que a cabeça se liberta de preocupações.

«Digo muitas vezes que temos de pensar no nosso corpo como uma árvore, à qual devemos dar amor, mas sobretudo compreender», explica a eterna aprendiz, para quem parar é morrer. «É suposto irmos sendo capazes de transpor o que fazemos no tapete do yoga para a nossa vida. A idade não trava ninguém que não queira ser travado. Há dois mil e quinhentos anos, Buda ensinou que somos o que pensamos e eu penso que a vida é uma procura constante, e o yoga uma coisa muito séria. Tenho tempo de ficar sossegada quando estiver na caixinha.» Por agora, prefere continuar a viver. Sempre que vai para o Ginásio Clube Português dar aulas, de segunda a sábado, passa no jardim das Amoreiras, em Lisboa, e fala com as Ginkgo bilobas, as suas preferidas. Gosta de abraçá-las, pedir-lhes que a inspirem com a sua infinita sabedoria.

«Os yogis foram sensatos. Criaram diferentes formas de yoga adequadas às várias personalidades, para que cada um sinta prazer.» A ela, agarrou-a o kripalu yoga, depois de experimentar o que lhe apeteceu. «É o yoga do coração, feito com amor para o corpo.» Em sete décadas de prática, tem sido um meio para manter a saúde: o físico livra-se de tensões acumuladas, enquanto os âsanas (posturas) permitem controlar a agitação do mental, sem o qual o yoga não passa de acrobacia. «Ensinou-me a gerir a minha energia, a equilibrá-la, a saber antecipar a sua perda em todos os domínios. Sentindo o que fazemos, restabelecemos a harmonia com o corpo e ficamos mais perto do Eu interior.» Chegou mesmo a tirar um mestrado em prânayâma (respiração) aos 60 anos, no Kripalu Center em Lennox, EUA, após o que lhe concederam o título de mestre Rupa. «Rupa significa energia, força.» O nome foi-lhe atribuído por Amrit Desai, o mestre indiano que se mudou para a América nos anos 1960, por achar que a aluna tinha muito das duas.

Na verdade, Clotilde tem isso e muito mais, foi sempre uma mulher de personalidade singular. Nasceu e ficou em Olhão até aos três anos, enquanto o avô viveu e olhou por ela e pela mãe (o pai partira para o Congo Belga, atual República Democrática do Congo, um ano antes). Mudaram-se então para Lisboa, ao cuidado de um tio oficial da Marinha acabado de casar, e ali se criou até 1939, altura em que a Segunda Guerra Mundial estalou e o pai a veio buscar para viver com ele na plantação de palmeiras selecionadas. «Tinha 15 anos quando fui para o mato, à beira do rio Lopori. A minha mãe já lá estava a morar havia uns oito anos e eu tinha o sexto do liceu. Aprendi primeiros socorros e fui ajudar na plantação, a fazer os partos das trabalhadoras. Tremi que me fartei no meu primeiro.»

Solitária de feitio, mais amiga de livros do que de bonecas, tornou-se meditativa a cirandar pela natureza, papagaios e plantas por todo o lado. Entrou em contacto com a sua energia subtil sem sequer saber o que isso era, ao mesmo tempo que fazia ginástica de competição em Leopoldville (atual Kinshasa, a capital) e andava a cavalo, dando cabo das costas a saltar obstáculos. Não contente com isso, ainda estudava filosofia. «Pedi à Universidade Lovanium, mais tarde Universidade de Kinshasa, que todos os meses me enviasse um trabalho de primeiro ano por correio. Eu fazia, devolvia para correção, ia a exame no final e passei. Foi aí que conheci o meu marido, a fazer lá um estágio na mesma altura», conta, segura de que não há coincidências. «Vivi três anos em casa do meu pai. Vim casar a Portugal. Voltei para África aos 19 anos e fiquei até perder o meu marido, tinha eu 38.»

Aí regressou de vez a Lisboa, viúva, com o Congo Belga à beira de ser tomado pelos independentistas (aconteceu em 1960). Os dois filhos já estavam a salvo em casa do tio que a criou, a estudarem no liceu Charles Lepierre, em Lisboa. A mãe estava com eles, ansiosa por Clotilde. O pai morrera três meses depois de lhe queimarem a plantação uma noite. «O yoga ajudou-me sempre a dar o passo seguinte, foi a minha força.» Descobriu-o no momento em que um médico belga em África lhe sugeriu ser o melhor para equilibrar a coluna, chocalhada pelas cavalgadas constantes. «Insistia que quando eu fosse a Bruxelas me dava o contacto do André van Lysebeth, um praticante e autor de yoga muito traduzido. Aos 23 ou 24 anos comecei pelo hatha yoga, que era o que se fazia na Europa.»

Clô ia à Bélgica visitar a família do marido, absorvia o máximo junto de André e Gérard Blitz (fundador do Club Med) e trabalhava a partir desses ensinamentos. «Criámos um grupo de prática de que fui pioneira, resultante na União Europeia de Yoga, e todos os anos fazíamos um encontro de uma semana em Zinal, na Suíça, um evento em grande, em que se convidava dois ou três grandes mestres.»

Assim aprendeu diretamente com Amrit Desai, que escolheu seguir, o guru Iyengar, um dos principais responsáveis pela divulgação do yoga no Ocidente, Satchidananda, criador do yoga integral, e Satyananda, que a impressionou especialmente por aparecer de ombros nus com uma temperatura de dez graus negativos. «Estávamos gelados, perguntámos-lhe se não tinha frio e ele respondeu que não tinha frio nenhum. É o poder da energia. Aos poucos percebi o que isso era.»

Já em Portugal, manteve o mesmo sistema de aprendizagem, acrescentando-lhe uma melhoria: começou a praticar no Ginásio Clube Português com Maria Helena de Freitas Branco, a primeira professora de yoga em Portugal, mais velha do que Clotilde (seria hoje ela a mais antiga se não tivesse largado o ensino para se dedicar ao piano). «Fazia nas aulas, fazia sozinha, ia tirando cursos na Suíça e nos EUA, validando a minha técnica.»

Aos 41 anos começou finalmente a ensinar também: primeiro em casa, depois de os filhos saírem e ter podido dispor dos quartos deles; mais tarde dividindo com Maria Helena as aulas no ginásio. Lecionou prânayâma a futuros professores de yoga na Faculdade de Motricidade Humana, de 2009 ao ano passado, num protocolo de colaboração com a Federação Portuguesa de Yoga. Publicou o livro O Yoga na Nossa Vida, em 2007 (ed. Arte Plural), para dizer a todos que a prática não traz nada do exterior, temos tudo cá dentro.

«Agora só falta mostrar aos utentes da casa de repouso onde estou há um mês os benefícios de se mexerem, em vez de passarem o dia sentados com uma mantinha nas pernas», suspira. Velhice não é doença, ela que o diga. E conta a todos o segredo mais bem guardado da sua longevidade: «O yoga, claro.» E caminhadas de uma hora em Belém ou no Guincho, aonde chega a conduzir o seu próprio jipe. E abster-se de carnes vermelhas, que detesta. E sessões diárias de «autofisioterapia» às seis da manhã, para recuperar das duas operações às ancas que desgastou com tanto exercício. E ter eliminado a carga material do seu passado: distribuiu os livros e Budas por amigos, destruiu todas as fotografias antigas e libertou-se. É aquilo que é, não o que foi. Não quis guardar nada nem tem medo de nada. «Prometi que quando chegar ao Céu vou dar uma aula de yoga a São Pedro, mas uma das minhas, sem facilitismos. Parece que ele receia apanhar-me pela frente, porque até agora tem preferido manter-me cá, onde não posso chegar-lhe.»

Na sala do Ginásio Clube, o tempo passa a voar entre alongamentos, respiração e alguns queixumes, até chegarem à meditação, deitados de costas a relaxar. «É desta parte que mais gosto», confessa Maria Júlia Garcia, 76 anos, e aluna há dois meses, após tentar dança e pilates. «Fumei dois maços de tabaco por dia durante 60 anos, deixei há ano e meio, engordei imenso. Além de que tenho um efisema, não podia continuar assim.»

O yoga acabou por ser uma revelação, exatamente aquilo de que o seu corpo e mente precisavam. «Tornou-se um vício, se não vier não respiro bem. Ainda ontem dizia a uma colega que também largou o tabaco: “Ó filha, tu vai para o yoga.” Isto é fabuloso.» Maria de Lurdes Braz, 84 anos, concorda: «Fiquei doente com uma ciática aos 40, fiz tratamentos, queriam operar-me à coluna com risco de ficar paraplégica. Descobri o yoga em boa hora: há trinta e tal anos que estou com a Clô e não voltei a ficar um dia de cama. Entro aqui velhinha, saio uma raparigaça.»

Também Mário Pinto, o capitão de Abril que comandou a tomada da prisão de Caxias em 1974, se rendeu à evidência de que as suas articulações dos tornozelos estão melhores do que nunca neste último quarto de século. Aos 77 anos, coronel reformado, vem de propósito de Oeiras às segundas, quartas e sextas para a sua hora zen. «É a minha ocupação permanente, a minha fonte de humor. Ajuda-me a viver bem.» E canta o Om três vezes com o resto do grupo, a vibrar ao som da energia divina. Om Shanti. Om Namah Shivaya. Shivaya Namah Om. Shanti. Shanti. Shanti. Paz. Paz. Paz. «Vamos sentir esta força que nos anima e se equilibra, gerando harmonia no centro do coração», termina Clotilde, radiosa, a elogiar o trabalho de todos na aula. «Jay Bhagwan. Inclino-me perante o divino em cada um de vós.»

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SAGRADO E MUITO ANTIGO
Ouve-se muita coisa acerca das raízes do yoga, que se perdem no tempo sem que alguém consiga situá-las com precisão, mas supõe-se que terá surgido na Índia há cerca de quatro mil anos por referências nos Vedas (os livros sagrados mais antigos do hinduísmo) e nos Upanishads (os comentários aos Vedas). Seria, contudo, o Yoga-Sûtra, um dos mais importantes tratados sobre a prática, sistematizado por Patañjali algures entre os séculos II a.C. e III d.C.., a assinalar a viragem de uma tradição mística para um modo de vida centrado na união (é esse o significado de yoga) entre corpo e mente, ajudada por uma boa respiração que nos faz falta a todos. Segundo a Federação Portuguesa de Yoga, o início do yoga moderno arrancou em 1893, quando Swami Vivekananda foi ao Congresso das Religiões em Chicago, EUA, e conquistou a atenção do mundo ocidental.

[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]