O Homem da Casa do Alto

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Passam 150 anos do nascimento de Raul Brandão. A efeméride celebra-se com um festival literário em Guimarães – o Húmus. Foi afinal ali que o escritor produziu grande parte da sua obra. Mas esta história passa-se a sete quilómetros dali, na aldeia onde o autor construiu um habitáculo para oferecer sobressalto ao mundo. Isto é uma casa. E, no entanto, isto não é só uma casa.

«Columbano, este ano não vou a Lisboa.» A carta que Raul Brandão escreveu ao pintor Bordalo Pinheiro em 1898 denunciava o seu entusiasmo pelas novidades. «Tenho uma quinta que comprei e quero pôr linda.» Na altura, não eram mais de três hectares de terreno baldio na aldeia de Nespereira, Guimarães, com uma corrente de casas térreas na parte mais plana do terreno.

O plano era ousado: construir todo um segundo piso de pés-direitos altos, mais um torreão de onde se pudesse observar inteirinho o vale. Demorou mais de uma década a levantar o edifício. Em 1912, quando a Casa do Alto ficou pronta, Brandão, então com 45 anos, pediu a reforma do Exército e passou a dedicar-se ao que realmente lhe interessava: a escrita. Daquelas paredes de granito nasceram alguns dos mais importantes trechos da literatura portuguesa que o início do século XX produziu. O Gebo e a Sombra, Os Pescadores, Húmus, mais três volumes de Memórias.

Aquela casa é bem capaz de explicar como Raul Brandão permaneceu numa relativa sombra da memória literária portuguesa do início do século XX. É certo que o modernismo, e a revista Orpheu, catapultaram Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro para a posição de vanguarda da cultura portuguesa. Mas, a partir de uma quintarola insuspeita no meio do verde, um homem criava a sua própria linguagem.

«De alguma forma, foi uma voz absolutamente original que a história injustiçou», diz o seu sobrinho-neto, o arquiteto Manuel Vilhena Roque, que hoje vive na casa depois de a recuperar. Brandão, bem vistas as coisas, fez o que ninguém tinha feito: misturou o expressionismo com o lirismo, a contemplação com uma mordaz crítica social. É o grande literato da época que preferiu o refúgio minhoto aos holofotes da cidade. E nada simboliza tanto a sua necessidade de recato como a construção da Casa do Alto.

«Esta manhã fiz um reconhecimento em torno da vivenda e fiquei deslumbrado com a luz e as coisas, com esta precisão desconcertante que acerta a casa com o jardinzito e a entrada, o pátio traseiro, bancos de granito, os degraus que levam à varanda alpendrada», escreveria numa carta a Vitorino Nemésio em 1920. Tudo, afinal, tinha sido um sonho seu.

A arquitetura, com lareiras encaixadas em paredes de pedra e corredores circulares, denuncia um projeto arquitetónico baseado no trabalho de Marques da Silva, arquiteto portuense que havia desenhado obras tão importantes como a Estação de São Bento, a Casa de Serralves ou o Liceu Alexandre Herculano, todos na Invicta.

No andar térreo ficavam as áreas mais funcionais da casa: a cozinha e os aposentos dos serviçais, mais o escritório de Raul Brandão. Ao primeiro piso chegava-se pelo interior que desaguava numa série de salas e quartos de hóspedes, mais um quarto de banho onde Maria Angelina, mulher do escritor, gostava de se demorar na lavagem da pele. Já ele preferia os banhos de tanque, com água gélida, indicada para quem tinha problemas cardíacos. Os médicos tinham-lhe diagnosticado problemas de coração – e Raul era a versão novecentista de um hipocondríaco.

No torreão ficava o quarto do casal, antecedido de uma extensa biblioteca que também servia para receber visitas. Se o trabalho de escrita era rotina no rés-do-chão, o convívio literato era hábito do primeiro andar – e nas noites de verão estendia-se ao granítico alpendre, o lugar que o escritor repetia ser o seu preferido da casa. Este é, em boa verdade, o pedaço mais autêntico do edifício.

Nos últimos anos, a habitação foi toda remodelada, mas não ali. Aquela espécie de varanda, de onde se consegue observar todo o vale, é a inspiração de uma série de livros onde o escritor descreveu meticulosamente as agruras e as comoções mínimas que só existem nas paisagens campestres. Bem vistas as coisas, desvirtuar aquele alpendre seria um crime literário.

Esta casa viveu grandes aventuras. Brandão viu-a como o seu refúgio de escrita, mas também como a sua fonte de rendimento. Mandou plantar árvores de fruto e um hectare de vinhas, que bastavam para sustentar a casa. Os verões passava-os na Nespereira, nos invernos rumava à capital, onde se encontrava com editores e escritores, poetas e jornalistas. Mas nunca foi um deles, era o estranho no meio da urbanidade.

Preferia convocar os amigos para a Casa do Alto – e eles acorriam, de comboio, mais para noites de tertúlia do que de festa. Não era boémio como Pessoa, era antes diletante, um amante regrado das palavras. Acordava com as galinhas, passeava pela propriedade, depois do pequeno-almoço fechava-se a escrever até ao pôr do sol, só interrompendo a rotina para um banho de tanque e o almoço. A partir da ceia, sim, debatia. Mas de forma regrada, sem ceder aos excessos que marcaram a sua geração.

Uma boa parte da sua austeridade há de explicar-se pela própria formação. Nascido no Porto, Foz do Douro, em 12 de março de 1867, foi o filho de pescadores que encontrou na carreira militar a saída para uma outra vida. O episódio mais marcante da sua existência, confessaria o próprio no primeiro volume de Memórias, seria um desfile de tropas em que viu pela primeira vez Maria Angelina, filha de um industrial de Guimarães onde ele tinha assentado praça – no que é hoje o Paço dos Duques de Bragança. Foi amor à primeira vista. Aconteceu em 1896, quando era alferes, poucos dias depois de chegar à cidade. Casaram um ano mais tarde, ele a escrever para jornais e revistas e a fazer planos de uma casa de criação – que compraria em 1898, e habitaria 14 anos depois.

A escolha da aldeia de Nespereira foi mais prática do que poética. Um dos irmãos de Maria Angelina tinha herdado a propriedade contígua, a Quinta de Martim, e as boas relações com o cunhado encaminharam a ida do escritor para ali. «Como nunca tiveram filhos adotaram de alguma forma a minha avó, a sobrinha mais nova», diz Manuel Vilhena Roque.

E foi essa mulher, que viveu até aos 110 anos e só morreu em 2016, que lhe contou as maiores peripécias da Casa do Alto. De como os escritores chegavam no comboio da tarde e suavam as estopinhas para subir a ladeira. De como Brandão se ocupava a dedilhar prosa mas às vezes largava porta fora e se punha a fazer caricaturas do povo que trabalhava a terra. De como gostava de subir o monte para se sentar numa fraga horizontal que era meio pedra e meio trono – e ali permanecia numa quietude profunda, a ouvir o ruído que esconde o silêncio.

A Casa do Alto esteve muitos anos de portas cerradas. Brandão morreu em 1930, Maria Angelina em meados dos anos setenta, e a maior parte do espólio do escritor foi entregue à Sociedade Martins Sarmento, a casa e arquivo dos grandes intelectuais da região. Brandão era sócio da associação, participava nas tertúlias da terra – Guimarães também fervilhava na viragem para o século XX. Mas muita da memória, das fotografias, da papelada, ficou ali a apodrecer, até um sobrinho-neto de Raul Brandão decidir finalmente salvar a propriedade.

No início dos anos oitenta, a família entregou a casa à Secretaria de Estado da Cultura – com o objetivo de que o estado a transformasse numa casa-museu. As obras de recuperação nunca vieram e, no final dos anos noventa, os telhados tinham ruído, as janelas estavam partidas, o recheio vandalizado. «Será a minha casa», disse Manuel Vilhena Roque em 1998. Mas, como com Brandão, o processo revelou-se moroso.

«Tentei modernizá-la, transformá-la num sítio onde pudesse viver com a minha família de forma confortável, mas sem desvirtuar a sua memória – que é a de um espaço e um tempo muito específico para a literatura portuguesa.» Então hoje a Casa do Alto tem salas modernas e quartos confortáveis, aproveitamento de calor e aquecimento central, mas também uma biblioteca recheada de primeiras edições, desenhos originais, dedicatórias de amor de Raul a Maria Angelina.

É bem provável que o leitor tenha pegado a 12 de março num jornal e se tenha deparado com uma história sobre os 150 anos de Raul Brandão. Ou sobre um pertinente festival literário chamado Húmus que reúne escritores a falar do seu legado. Mas esta reportagem é na verdade sobre uma escadaria que existe nas traseiras da Casa do Alto, o lugar onde o escritor e a mulher gostavam de se sentar para beber o sol do fim da tarde – e onde o casal que hoje habita o edifício cumpre a mesmíssima tradição crepuscular.

Este sítio manteve-se de portas fechadas durante décadas. Filmaram-se aqui trechos das peças de teatro do escritor, houve uma reportagem sobre o risco da ruína do edifício, mas a Casa do Alto foi sempre o segredo bem guardado de um escritor que também foi um segredo. E se calhar por isto: naqueles degraus, mesmo antes do pôr do Sol, há um brilho que não é mais nem menos do que pura literatura.