Lena D’Água: «Sempre vivi só da música. Sou franciscana»

[Entrevista conjunta com Salvador Sobral e Lena D’Água publicada originalmente em abril de 2017]

Entrevista Alexandra Tavares-Teles | Fotografia Gerardo Santos/Global Imagens

Sentados na sala de reuniões da NOTÍCIAS MAGAZINE, Salvador Sobral e Lena d’Água vão trocando opiniões. Fazem perguntas, partilham memórias, por vezes num registo intimista, dada a empatia mútua desde o dia em que se conheceram. Separam-nos mais de três décadas (Lena nasceu em 1957, Salvador em 1989), mas não parece. Os poemas dela, quarenta anos de palco, celebrados na companhia de Billie, Elis e Chico, e as letras dele, os tempos de Erasmus, o curso trocado pelo jazz nos bares de Maiorca e Barcelona.

Como se conheceram?
Salvador Sobral (SS) – Ainda te lembras, Lena? Foi há um ano e tal, num sítio lindo e no melhor festival de música deste país. Bom, na verdade, nem é bem um festival de música.
Lena Águas (LA) – Então, não havia de me lembrar. Foi em 2015, no Festival Folio, em Óbidos. Moro perto, fui ver o [António] Zambujo com a Mayra [Andrade]. Já agora, nem sabem o que me aconteceu ao sair de casa. Nem te cheguei a contar, Salvador.

Então?
LA – Javalis. Tive de parar o carro.
SS – Mas tu vives onde??
LA – Numa aldeiazinha, entre o Cadaval e o Bombarral. Bom, saí de casa já perto das nove horas, no lusco-fusco, ia na estrada e vi umas «coisas» a mexerem. Paro o carro, era um grupo de javalis a atravessar a estrada mesmo à minha frente, da direita para a esquerda. Achei logo que isso devia ter algum significado [gargalhada]. Lembro-me do som dos cascos no alcatrão. Foi, portanto, no dia em que nos conhecemos. Fomos ver, cada um por si, o Zambujo com a Mayra.
SS – A cantarem Caetano Veloso.
LA – O Caetano, gosto tanto. Conhecemo-nos no final do concerto, quando fomos ao camarim cumprimentar os artistas.
SS – Nunca tinha estado com o Zambujo.
LA – Nem eu, nem eu. Pensei que já o conhecias.
SS – A sério? E eu pensei que fosses íntima.
LA – Não. Canto com vários dos músicos que tocam com ele, e era «amiga» do Tiago Cação quando conheci o António no Facebook, ou no Messenger, talvez. Uma vez, estivemos horas à conversa, ele no Brasil, já tarde, depois de um concerto e eu aqui, de manhãzinha, já acordada com a luz da manhã a falar da vida e do Benfica, claro.

«Tenho alguma curiosidade pela bissexualidade. É uma forma de amor que nem sequer olha a sexos. É o máximo do amor. Nunca consegui amar um homem. Já amaste uma mulher?», pergunta Salvador. «Não, por acaso não. A Elis não conta, acho eu», diz Lena.

Qual foi a primeira impressão um do outro?
SS – A Lena fez-me logo a carta astral. A minha impressão foi «ãh-ãh, és do grupo das pessoas espirituais». Na altura, eu tinha uma namorada muito espiritual, muito esotérica.
Que ditava a carta astral?
SS – Não me lembro bem. Sou Capricórnio, mas nunca liguei a isso.
LA – Ele não acredita em nada daquilo e eu já não me lembro, passou mais de um ano e não voltei a lê-la.
SS – Não vivo de acordo com o meu horóscopo.
LA – Por causa desta nossa conversa, ainda pensei reler a carta astral, depois não o fiz. Bem, depois de Óbidos conheci-te um pouco mais, por causa da música. Andei à tua procura no YouTube. Naquele dia, a conversa que nos ligou foi o Zambujo ter deixado de fumar. Tu também já tinhas deixado. Eu, não.
SS – Tu fumas pouco. Se conseguisse fumar pouco também fumava. Há pessoas que fumam duas vezes por semana. Acho isso incrível.
LA – Fumo o cigarro só até meio. Gasto imenso dinheiro em tabaco que não fumo.
Deixou sem ajuda, Salvador?
SS – Sim, mas tinha estímulos de saúde muito fortes. Não podia continuar a fumar de maneira nenhuma. Fumava tabaco de enrolar, um pacote para quatro dias. Ainda era algum tabaco.
LA – Já tentei deixar de fumar várias vezes. É uma luta. Fico ansiosa e irritadiça. Mas ainda vou deixar de fumar. Antes de morrer [risos].

É bom para a voz, dizem.
SS – Sabem, não notei diferenças. Quando deixei de fumar charros, sim, a minha voz melhorou imenso, com tabaco não senti nada. Nem na voz, nem no olfato, nem no paladar. Foi triste, gostava de ter sentido.
Um ano depois reencontram-se. No festival da Canção. Quem diria?
SS – Soube da participação da Lena por um amigo comum que estava a trabalhar, com o Benjamim, na canção do Pedro Silva Martins. Ouvi a tua música, foi na verdade a única que ouvi. Curto a voz da Lena.
LA – Aconteceu uma coisa engraçada – numa das entrevistas que dei antes do festival, perguntaram-me com qual dos restantes artistas concorrentes gostaria de fazer um dueto. Não hesitei: com o Salvador.
Porquê?
LA – Depois do nosso encontro no Folio, fui à procura do Salvador Sobral no YouTube. Quando ouvi aquela voz e aquela sonoridade, que me leva até à minha família do jazz fiquei admirada e surpreendida. Até lhe mandei uma mensagem a dizer que um dia gostaria de cantar com ele.
SS – Pois é, tu gostas muito de jazz. Era o teu pai que te trazia discos, não era? Contaste-me isso nos bastidores do festival. Nunca mais me esqueci dessa conversa.
Que história é essa? Falem-me dos bastidores.
SS – Uma história que a Lena me contou e que eu nunca mais esqueci. O pai trazia discos do estrangeiro. E disseste-me que viste o Miles Davis ao vivo. Ou foi o Chet [Baker]? E o Monk, viste o [Thelonious] Monk, não foi?
LA – No festival de Cascais? No festival de Cascais, sim, vi todos esses monstros. E contei-te dos discos que o meu pai trazia das viagens ao estrangeiro que fazia quando jogava no Benfica, discos incríveis que não havia em Portugal. Count Basie e Orchestra, Frank Sinatra, Louie Armstrong, e muitos mais. Foram as primeiras músicas que ouvi na vida. Eu também não me esqueci de uma coisa que disseste quando te contei que as minhas cantoras inspiradoras, depois da Melanie [Safka], tinham sido a Billie [Holiday] e, sobretudo, a Elis [Regina], que eu cantava quando a minha filha era bebé e eu ficava na sala a passar a ferro. E tu, sobre essas referências, disseste «iá, nota-se».

A música no sangue

José Águas gostava de cantar?
LA – Adorava. Cantava perfeitamente as canções do Nat King Cole.
SS – A sério?
LA – Era lindo e muito divertido. O meu pai a cantar Nat King Cole en español mas com sotaque americano. Era uma risota. Lá em casa, toda a gente cantava. Por isso nunca pensei ser cantora, para mim cantar não era profissão, apenas uma coisa natural que se fazia sem esforço nem público, era parte da vida.

Duas famílias com vocação musical.
SS – Completamente. O meu pai é um super-músico. Até ter alguma determinação, ouvia o que o meu pai ouvia. Sobretudo Beatles. O meu pai é muito anos sessenta. Beatles, Simon & Garfunkel, Neil Young, Bob Dylan.
LA – O teu pai deve ser da minha idade porque eu ouvia isso tudo.
SS – Sessenta e três anos.
LA – Pois, tem poucos mais de que eu.
SS – Também ouvia muito James Taylor, há um dueto dele com a mulher, como se chama ela?
LA – Carly Simon! You Can Close Your Eyes.
SS – É tão bonito, tão bonito.
[cantam]

Românticos, portanto.
LA – Mas claro, somos cantores.
SS – Não há outra hipótese.

Porquê?
LA – A voz é o corpo da alma. A voz é a nossa alma a sair-nos pela boca.
SS – A voz é a alma personificada.

Muito «apaixonadiços»?
LA – Muito. Apaixonei-me mil vezes.
SS – Também sou assim. Apaixono-me imensas vezes
LA – Amigas minhas diziam-me que adorariam ser como eu, andava sempre apaixonada.
SS – Largo tudo.
LA – Tudo. Depois, quando acabava, acabava mesmo tudo.
SS – Exatamente. Sabem, tenho alguma curiosidade pela bissexualidade. É uma forma de amor que nem sequer olha a sexos. É o máximo do amor. Nunca consegui amar um homem. Já amaste uma mulher?
LA – Não, por acaso não. A Elis não conta, acho eu.

O jazz chegou mais tarde aos dois.
SS – Sim, numa segunda fase, já com mais auto-determinação, passei a Stevie Wonder, Ray Charles e às coisas da adolescência, como os Beach Boys. O jazz só veio muito mais tarde. A Luísa [Sobral], que tem mais dois anos, sempre compôs, começou aos 12 anos. Ouvia Ray Charles, Bethânia, Chico [Buarque] e as Spice Girls. Também faz parte.

Quando o meu pai deixou o Benfica, em 1963, eu era «a filha do Águas». Quase vinte anos mais tarde, fiquei famosa (1981) e o meu pai passou a ser «o pai da Lena d’Água». Depois, o Rui foi
«o irmão da Lena d’Água» até que chegou à popularidade (1985) E aí eu passei eu a ser «a irmã do Rui Águas». Foi isso. [risos]

Com que idade perceberam que cantavam bem?
SS – Quando na terceira classe, comecei a receber elogios.
LA – Muito cedo, também. Quando era miúda e cantava na igreja as pessoas viravam-se para trás. Foi aí, acho.
A primeira vez que cantaram em público, lembram-se?
SS – Aos 8 anos, numa festa da escola. Normalmente eram canções compostas mesmo para as festas da escola, mas tenho a ideia que foi um fado. Não me lembro qual.
LA – Foi na igreja [risos].

Gostavam de se ouvir?
SS – Na altura do Ídolos detestava. Hoje, sim. Estou a descobrir o meu timbre e a minha personalidade artística.

O apelido ajudou, Helena?
LA – Quando o meu pai deixou o Benfica, em 1963, eu era «a filha do Águas». Quase vinte anos mais tarde, fiquei famosa (1981) e o meu pai passou a ser «o pai da Lena d’Água». Depois, o Rui foi «o irmão da Lena d’Água» até que chegou à popularidade (1985) E aí eu passei eu a ser «a irmã do Rui Águas». Foi isso. [risos]
SS – O teu pai gostava da tua música, apoiava-te?
LA – Gostava muito. Às vezes chamava-me Lena d’Água, a artista, a gozar.
Foi ele quem escolheu o nome artístico?
LA – Não. Foi um acidente, resultou da confusão feita por um amigo do nome «Diadágua», o grupo do Luís Pedro Fonseca em que cantei algum tempo, com o meu nome verdadeiro, Lena Águas. E ficou Lena d’Água.

Fãs um do outro

Voltemos ao Festival. Como reagiram ao convite da RTP?
SS – Quando a Luísa telefonou, a minha primeira reação foi dizer não, nem pensar. Mais programas de televisão, não. Fiquei traumatizado com o Ídolos. Mas quando me disse que também participavam músicos como o Samuel Úria ou o Pedro Silva Martins deixou-me a ponderar. Por fim, mandou-me a música. Bem, achei-a lindíssima, não dava para dizer não.
LA – Perante o convite do Pedro Silva Martins, não hesitei. O Pedro é o Pedro. Fez logo três canções, uma delas muito na onda da tua, Salvador. Linda. Acabámos por escolher uma das outras duas para o festival.
SS – Fomos para o estúdio, gravei um take e ficou bem. Pareceu-me mesmo muito bem, espontâneo. Mas houve uma parte de que a Luísa [Sobral] não gostou. Para ela, eu não estava a conseguir encaixar a última frase. E, então, repetimos e repetimos, até que «flipei» e comecei a gritar. «O primeiro take está bom, não vamos destruir isso». E ela, na régie, a insistir, eram já duas da manhã. «Não sejas mimado, tens de gravar mais uma vez». Gravámos o take final. Ficou bem mas quando o oiço noto na voz a minha raiva. Sou sempre pela espontaneidade que se vive no jazz. O que se diz no momento é o que deve ficar.
LA – A técnica ajuda a projetar melhor, a respirar melhor mas a emoção primordial vai-se perdendo. Também sinto isso.

«O povo não está musicalmente muito educado», diz Lena D’Água. Salvador concorda: «É um bocado condescendente dizer isso mas não, não está. As pessoas “comem” o que as rádios lhes dão. E as rádios dão muita fast food»

Sem emoção não há grandes interpretações ou intérpretes?
LA – Pouco, muito pouco. Não sei se te lembras do primeiro ensaio que fizeste no Coliseu? Tinhas falhado os outros por estares a recuperar da cirurgia e chegaste no domingo à tarde. Fizeste umas variações de uma riqueza e de uma beleza tais, que ficámos todos de boca aberta. Já chorei várias vezes a ouvir-te.
SS – A minha irmã não me deixa fazer isso. E entendo: a melodia tem de ser sempre igual. Ora, nunca canto aquilo da mesma maneira, sobretudo nos ensaios, que é quando aproveito para fazer variações malucas.

Se fossem júri, teriam votado um no outro?
SS – Votaria nela e disse-o há bastante tempo. Ela sabe.
LA – Basta dizer que quando chegámos à final e vi que a votação do público em mim era fraquinha, fiz um post no Facebook em que disse «meus amigos, não há hipótese nenhuma. Esqueçam, não votem nem gastem dinheiro comigo, se quiserem votar votem no Salvador».
SS – [gargalhada]
LA – Passados 3 minutos, o Pedro [Silva Martins] mandou mensagem: «Lena, não faças isso, a RTP convidou-nos, não é lá muito correto estares a fazer isso».
SS – Fizeste mesmo esse post?
LA – Sim, fiz, mas depois da mensagem do Pedro editei logo, só lá esteve uns três minutos. Disfarcei a coisa.
SS – Tenho pena. As pessoas não percebem. Também não perceberam a canção do Samuel Úria, que era tão bonita.
LA – O povo não está musicalmente muito educado.
SS – É um bocado condescendente dizer isso mas não, não está. As pessoas «comem» o que as rádios lhes dão. E as rádios dão muita fast food. Estímulo aos 10 segundos, estímulo aos 20. Em conversa com um editor, ele dizia-me isso. Se aos 10 segundos não há um estímulo, a malta muda de música. Vivemos nesta era em que se procuram estímulos constantes. Por isso é que esta canção (Amar pelos Dois) foi …
LA – … um oásis.
SS – Sim, um bocadinho de ar fresco. Faz bem descansar um bocadinho de tantos estímulos e tanta confusão. A voz da Lena, por exemplo. Não é de gritos nem malabarismos vocais.

O povo pouco educado escolheu um de vós.
SS – Ah, mas isso é uma coisa de modas.
LA – Nunca imaginei que o Salvador ganhasse. A sério.
SS – Nem eu.

Quem pensaram que ganharia?
SS – Um daqueles que gritaram mais.
LA – Aquela dos três cantores, muito forte.

A que atribuem o resultado pior de Nunca me fui embora?
LA – Desde logo ao facto de eu ser uma cantora de sessenta anos no meio de toda aquela juventude.

De onde vem o sucesso de Tony Carreira ou de Marco Paulo (de quem a Helena foi coro num disco)?
LA – Não costumo ouvir o Tony. O sucesso de Marco Paulo veio de um repertório de grandes êxitos internacionais a que se deu letra em português, escolhido com cuidado para não falhar, e o Marco Paulo tinha aquela grande voz que conserva praticamente intacta até hoje. O Tony é um belo homem e em Portugal fazia já falta uma renovação no campo dos cantores populares de charme. Tenho o maior respeito pelos dois, são artistas que ganharam o seu lugar a pulso. Mas, em termos de voz, não são comparáveis.
SS – O Tony tem uma voz mais pequena.

Canta-se mal em Portugal?
LA – Há pessoas que cantam muito mal. Desconfio de pessoas que cantam muito mal.
SS – [riso]

Diz-me como cantas dir-te-ei quem és?
LA – É um bocadinho assim. Acredito nisso.

Que música já ouviram hoje?
SS – Porque vinha para aqui, Sempre que o amor me quiser.
LA – Nada de especial, rádio apenas.

Quando os artistas se apresentam ao respeitável público

Quarenta anos de carreira no caso da Lena, sete anos, no do Salvador. Para ambos uma estreia no Festival (apesar da participação de 1980, em que a Lena substituiu a Adelaide Ferreira).
SS – Caramba, quarenta anos de carreira.
LA – A primeira vez que subi ao palco para cantar com os Beatnicks ainda não tinha 20 anos. Foi numa festa de finalistas do liceu de Sintra. A minha participação em 1980 não conta, porque a canção não era para mim. A Adelaide não a quis «defender» e aproveitei, era trabalho. Foi entre a minha saída dos Beatnicks e a formação da Salada de Frutas.

O que é que aconteceu?
LA – O Paulo de Carvalho fez uma canção que era um gozo ao festival, a pior canção que o Paulo de Carvalho já fez e ele deve saber disso. «Olá tudo bem por cá, festa como esta não há/ Olá o que estará para vir qual será a prenda bonita que estará para sair». E o refrão ia para baixo: «Cega rega cantas tu, cega rega canto eu, cega rega cantas tu, cantas tu mais eu.» Bom, era isto. A Adelaide, que tinha para essa edição um projeto com a Ana Bola e a Mila (As Alegres Comadres), declinou o convite do Paulo e ele ligou-me a saber se eu queria substituí-la. A canção não passou à final, nem há registo na RTP dessas semi-finais.

O palco do Festival é como outro qualquer?
SS – Na verdade, sim. Se souber a canção, vou sempre tranquilo. E foi o que aconteceu. Sabia a canção e só me apetecia cantar. Estava cheio de adrenalina. Há muito tempo que não tenho medo do palco. Tu tens?
LA – Um bocadinho antes sinto um apertozito. Mas passa logo.
SS – Tinha a canção controlada e por isso não estava nada nervoso. Até porque aquilo não é a vida e a morte. É um momento. O que conta mesmo é a carreira.

«Nunca procurei a fama, nunca quis ser famosa. quando nasci a notícia saiu no jornal porque o meu pai era o capitão do Benfica. Mas a fama não foi nada que eu procurasse, pelo contrário», Lena D’Água

A participação da Lena foi anunciada como o grande regresso.
LA – Sempre o meu regresso. Acontece que nunca me fui embora. Não apareço tanto na televisão, é verdade, as minhas músicas passam pouco na rádio, só muito de vez em quando em novela, mas continuo a gravar discos meus e a fazer outras coisas. Nos últimos anos participei em discos do Ciclo Preparatório e d’Os Capitães da Areia, fiz parte do Tributo a Lou Reed, a convite do Zé Pedro (Xutos & Pontapés) e mais recentemente cantei com com They’re Heading West e Benjamim.
SS – Continuas a ir ao Hot [Clube]?
LA – O ano passado, celebrei no Hot os 60 anos de vida e 40 de palco. Telefonei aos meus rapazes do Hot: «quem pode vir fazer a sexta e o sábado comigo?» Foi muito giro. Fizemos duas noites em junho com temas da Billie, outros da Elis e do Chico e também os autores portugueses que sempre cantei. Os músicos foram o Bernardo e o João Moreira, o Nuno Ferreira, o Rodrigo Gonçalves e o Bruno Pedroso.
SS – Esteve lá o baterista que toca comigo.
LA – Sim, o Bruno [Pedroso]. O Hot fez recorde de bilheteira na primeira noite! Foi uma festa. Adoro cantar no Hot.

Que explicação encontram para ter deixado de «passar» na televisão?
LA – Em 2007, gravei ao vivo no Hot um disco só com temas portugueses dos anos 1970 e 80: Sempre, ao vivo no Hot Clube, com músicos de jazz, claro. (Bernardo Moreira, André Fernandes, João Moreira e Marco Franco). Ficou uma pérola, esse disco. E gravado ao primeiro take! Muito belo. Só que a sonoridade jazzy não passa muito na rádio e na televisão poucos são os programas em que podes tocar ao vivo, em regra, faz-se playback, não dava. O meu último disco foi gravado com músicos de rock, só com temas meus dos anos 80. Mas o rock também já passou mais na rádio. Lá aparecemos na televisão duas ou três vezes. Grande disco, esse (Carrossel, Lena d’Água & Rock’n’Roll Station), gravámos o Robot e tudo! Só bateria, baixo e guitarra, muito simples, também gosto muito desse disco. É rock puro e duro!
SS – O disco de rock saiu há quanto tempo?
LA – Em 2014, mas teve pouquíssima divulgação, e a rádio não passou, por isso fizemos poucos concertos. Grandes concertos, por sinal…. Um disco não passou por ser de jazz, o outro não passou por ser de rock. Estão a ver?

Conhecem bem o trabalho um do outro?
SS – Desde logo a típica Sempre que o amor me quiser.
LA – Essa é fatal como o destino. Perto de ti é outra. Perto de ti é onde eu quero estar.

Nostalgia desses tempos, Lena?
LA – Não, nem por isso. As canções continuam vivas. Tão vivas que duas delas (Jardim Zoológico, single de 1983, e Tao, do álbum de 1986, Terra Prometida) vão ser editadas em vinil (12”) na Nova Zelândia! É agora no final deste mês de abril. Tenho saudades, sim, de ser giríssima e ter trinta anos.

Nem da euforia em que vivia?
LA – Não gosto de euforia.
SS – É por isso que vives no meio do nada?
LA – Por isso é que saí daqui e fui para o campo. Nunca procurei a fama, nunca quis ser famosa. O que é certo é que quando nasci a notícia saiu no jornal porque o meu pai era o capitão do Benfica. A fama não foi nada que eu procurasse, pelo contrário.

Foi capa de uma revista ainda em criança.
O Benfica Ilustrado, em março de 1958, com um casaquinho vermelho

Não houve então uma travessia do deserto?
LA – Todas as vidas são um bocado travessias do deserto. Digo-vos outra coisa: naqueles anos de grande fama e euforia era infelicíssima no amor. Agora já não sou, até porque já não tenho amor há muito tempo [gargalhada].
SS – Mas porquê? Porque escolhias mal?
LA – Devia ser isso. A única pessoa que escolhi bem…
SS – foi o André? O teu ex-marido toca comigo..
LA – Não, não era nele [André Sousa Machado] que estava a pensar. Além disso, eu e o André nunca nos casámos.

«Sou um beto que saí da caixa. Devo-o aos meus pais que me educaram de outra maneira. Não gostava de discotecas, não acompanhava os meus amigos – eles queriam beber e andar à porrada e eu não gostava disso», Salvador Sobral

Como é que um músico encara a possibilidade de não conseguir viver só da música?
LA – Sempre vivi exclusivamente da música. Mas sou franciscana. Tenho um carrinho de há 20 anos, uma pequena casinha mas que está paga. Nunca tive outro trabalho em quarenta anos. É possível, sim.
SS – Um dos meus sonhos é viver só da música. Vives dos direitos, Lena?
LA – Não, eu não sou compositora. Aparece sempre um concerto que me vem salvar. A sério. Aparece sempre.

A participação no Festival trouxe muito trabalho?
SS – Muito mais. Mas no meu caso, nem sempre foi sempre assim. Uma das vantagens de um músico de jazz é que tem sempre os bares. São a tábua de salvação. Recebe-se debaixo da mesa, sem faturar nada. Tocava na Fábrica do Braço de Prata mas tinha de ir a Espanha – Maiorca, Barcelona ou Andaluzia – uma vez por mês.
LA – Pagam bastante mais que os de cá, não? Cá, os bares pagam pouco, aos 50 paus.
SS – Pagam melhor, é verdade. De uma maneira ou outra, vamo-nos safando. Um cantautor tem sempre mais dificuldade. Os músicos de jazz têm mais trabalhos.
LA – Nem todos.

O preço da fama

Continua a ser reconhecida na rua?
LA – As pessoas reconhecem-me pela voz. Nas lojas, às vezes acontece. Quando ouvem a minha voz, olham e perguntam, «é a Lena, não é? Reconheci-a pela voz!»
SS – Comigo, nada que se compare com o que acontecia na altura do Ídolos. As pessoas eram agressivas e intrusivas. Agora é diferente, desde logo porque a minha participação no Festival não me compromete, orgulho-me da canção. E as abordagens não são agressivas, pelo contrário: desejam-me boa sorte e dizem que gostaram muito. Assim, tudo bem. De outra forma, lido mal com a exposição.

Ídolos, no caso do Salvador, Big Brother Famosos, no caso da Lena. O que vos levou a participar?
SS – Fui inscrito por uma ex-namorada e nunca pensei que iria ter aquele tipo de repercussão. Com 18 anos não pensei em nada. Depois aquilo aconteceu, fiquei maluco, e tive de ir para Espanha.
LA – Antigamente, havia apenas um canal de televisão e o foco estava todo no artista. Saía um disco, aparecíamos na televisão, passávamos em todas as rádios, durante dias, semanas e meses, nada como agora. Não havendo tantos canais, a verdade é que o foco estava mais em cima de nós.
SS – As pessoas eram chatas?
LA – Um bocadinho chatas, queriam tocar..
SS – Perseguiam-te?
LA – Com certeza. Ainda hoje tenho alguns cuidados. Às vezes são homens que não conheço de lado nenhum que vêm abraçar-me. Digo-lhes logo: «largue-me, que não gosto que me agarrem.» [risos]
SS – O Ídolos foi o fim da relação com a minha namorada. Foi tudo tão louco e os ciúmes dela eram tantos que acabou.
LA – O Big Brother não interessa nada. Não vou falar disso.

Apelido famoso de um lado, nome aristocrático, de outro (vários títulos e ascendência alemã, holandesa, italiana e francesa).
SS – Sou um beto que saí da caixa. Devo-o aos meus pais que me educaram de outra maneira. Andei nos Salesianos de Lisboa, estudei no Maria Amália Vaz de Carvalho, mas era diferente. Não gostava de discotecas, não acompanhava os meus amigos eles queriam beber e andar à porrada e eu não gostava disso. Com as miúdas, também não tinha muito jeito nem sorte. Nessa fase, não gostam de rapazes que pareçam muito mais novos. E eu parecia. Só mais tarde, com 20 e tal anos, comecei a perceber as miúdas.
LA – Também fiz o liceu no Maria Amália. Queria fazer Sociologia, mas logo no primeiro semestre do ISCTE acontece o 25 de abril, e como não havia professores nem aulas e eu não queria desperdiçar a minha vida à espera, mudei de ideias e fiz o Magistério Primário. Sempre gostei de Pedagogia e de Psicopedagogia, gostei muito desses três anos do curso. E levei a minha bebé Sara várias vezes às aulas de Psicologia.

Estudaram música?
LA – Uma guitarra acústica foi a minha prenda por ter dispensado de exame no quinto ano, tinha eu 14, e aprendi a tocar com a ajuda de um amigo. Com três ou quatro acordes que fui aprendendo com ele, conseguia sacar todas as músicas da Melanie Safka. Foi com ela que aprendi a cantar acompanhando-me à viola.
SS – E Joni Mitchell, não tocavas?
LA – Era muito mais complicado. As da Melanie são muito simples e ainda as sei tocar, mas só em dias muito especiais, para um ou dois amigos mais íntimos. De resto, há sempre alguém que toca muito melhor do que eu e é bom que cada um faça aquilo que sabe fazer melhor. Eu prefiro cantar.
SS – Fui estudar jazz na Taller de Musics, em Barcelona, mas na verdade tudo começa em Maiorca, onde fazia Erasmus (Psicologia), do qual rapidamente desisti. Para dizer a verdade, lembro-me de uma única cadeira – Psicología del Arte, a única a que passei. Avisei a minha mãe que me disse «ai sim, então vou deixar de te dar dinheiro». Pedi então a um amigo que me emprestasse algum e, pouco depois, já estava a ganhar dois mil euros por mês. Era duro cantar das 8 da noite à meia-noite e meia mas compensava. A ilha é linda, todas as noites tocava (cantava) em hotéis e só pensava «vou ficar aqui o resto da minha vida». Mas depois veio o inverno maiorquino e foi duro porque não se passava nada. Achei que tinha de fazer alguma coisa. Fui estudar música à séria.

«As revistas escrevem coisas terríveis, que não tem nada que ver com música. Mas sobre a questão das drogas, tenho a certeza de que a Lena já tomou mil vezes mais drogas que alguma vez tomei. Não tenho legitimidade nenhuma ao lado desta senhora», Salvador Sobral.

Pesquisando no Google «Salvador Sobral»/«Maiorca», encontram-se muitas entradas em que fala do consumo de drogas. Foi o que ficou de uma entrevista. Depois, passou a ter mais cuidado?
SS – Podia não ter dito, mas sou a pessoa mais inconveniente e inoportuna. É indiferente. Era Erasmus, tinha 21 anos, estava numa ilha linda, com muitos outros da minha idade. É claro que há drogas. Isso, como digo é-me indiferente. Já não me é indiferente que digam que cantei no festival drogado. E já li isso.

Estava preparado para a intrusão?
SS – Mais ou menos. Acho graça a isso das drogas porque hoje em dia se fumasse um charro caía para o lado. As pessoas têm de mim uma ideia errada. Nos concertos, faço a minha crítica às revistas. Finjo que sou uma revista e digo «nós queremos é vender, conta-me se estás a morrer, se vais morrer amanhã, nós precisamos de saber para lançar a notícia», tudo isto acompanhado por um solo de bateria super-caótico. Essa é a minha maneira de lidar com a situação e responder.

Como foram aqueles minutos no palco do Coliseu?
SS – Estava com dores mas já estou habituado. Tenho vários tipos de dores ao longo do dia, imensas dores de velhos. Estou habituado a cantar em condições extremas. No palco, nada disso conta.
LA – O palco é um sítio difícil de explicar mas é um sitio de magia, de alquimia e de liberdade.
SS – A dada altura, depois de ter lido certas coisas, senti-me um bocado invadido, passei mal por causa disso. As revistas escrevem coisas terríveis, que não tem nada que ver com música. Mas sobre a questão das drogas, tenho a certeza de que a Lena já tomou mil vezes mais drogas que alguma vez tomei. Não tenho legitimidade nenhuma ao lado desta senhora.
LA – [gargalhada] Nós não fizemos Erasmus, mas também fumávamos muitos charros nesses tempos de juventude. Por isso te disse lá atrás do palco do Festival [da Canção] que de alguns dos grandes músicos que vi tocar no festival de jazz de Cascais nem me lembro bem se os vi ou se não os vi [risos].
SS – Eram só charros? Imaginava coisas mais divertidas.
LA – Não, nós não. Era charros, joints, baseados, picas, ganzas. Bons tempos. [risos]
SS – Nunca tomaste LSD?
LA – Não. Ou melhor, uma vez, mas não senti grande coisa, não percebi nada, se calhar não era.

«Fui membro do Eurojúri. Pediram a músicos dos 43 países que escolhessem as suas dez canções preferidas. Pedi ajuda a um amigo com muita paciência e muito mais conhecimento em festivais do que eu e escolhemos as melhorzinhas. Mas não pude votar em ti, Salvador», Lena d’Água.

Falem-me desta fase do vosso percurso.
SS – O meu percurso foi pouco abalado pela vitória no Festival. Depois do meu primeiro disco – Excuse me, 2016 – preparei-me para um ano de tournée, e planeei o segundo disco para 2018. Tudo se mantém. O festival dá-me, naturalmente, muito mais datas. Vou ter mais oito ou dez datas do que teria: Pombal, Sesimbra, Seixal, Faro, Castro Verde, Cartaxo, Ílhavo, CCB, Casa da Música, Convento de São Francisco em Coimbra. E outros. Vou aproveitar.
LA – Agora a coisa mais importante é o meu disco de originais (temas do Pedro da Silva Martins) que já começámos a gravar. A banda, que na verdade são duas bandas, (West e Benjamim) dão às canções do Pedro o envolvimento certo. Os arranjos são de uma simplicidade arrebatadora, adoro cantar assim tão bem acompanhada. Estou muito contente. Diria mesmo que estou muito feliz.
SS – Lançar discos e ser feliz, é o que quero. E ter saúde. E, mais tarde, andar pela América do Sul com a minha música. Agora, gostava de poder viver em Paris. Paris é uma cidade cheia de cultura e conhecimento. Quero mergulhar nesse universo e aprender essa língua tão bonita. Depois de Barcelona, faz sentido que vá para lá.

«O resultado do festival é-me indiferente»

Para já, Kiev. Acham que vai correr bem?
SS – Só quero cantar bem e passar emoção às pessoas.
LA – Fui membro do Eurojúri, sabem? Pediram a músicos dos 43 países que escolhessem as suas dez canções preferidas. Então, pedi ajuda a um amigo com muita paciência e muito mais conhecimento em festivais do que eu e entre os dois escolhemos as melhorzinhas. Mas não pude votar em ti, Salvador.

Há rankings e banco de apostas.
SS – É verdade. Há malta a meter dinheiro nas apostas.
LA – Parece que já voltaste ao quarto lugar do ranking.

Qual é a vossa aposta?
LA – A Itália vai ganhar, não achas? E tu ficas em segundo.
SS – Não sei. É-me completamente indiferente.

Indiferente?
SS – Se se ganhar dinheiro não me importo de ganhar [risos]. A minha canção nada tem a ver com aquilo, portanto é muito provável que não ganhe. Ou então não, como agora vale o que é diferente, talvez tenha hipótese. Se ganhou uma miúda com barba, por que não ganhar agora um gajo que leva uma canção meio jazz meio bossa.

Acreditam que o concurso está dominado por alguns países?
SS – Não faço ideia nem me interessa. O que quero é cantar bem e passar emoções. Não me esquecer da letra. Acho muito improvável que isso aconteça porque a sei muito bem. Atenção, antes há o dia 9. Se calhar nem vou passar ao dia 13.
LA – Claro que vais passar à final. Estás maluco. Já ouviste as canções? Cá, vamos juntar-nos. Já combinei com o Benjamim e com o resto do pessoal.
Já escolheu a roupa?
SS – A minha mãe vai fazer. Vai ser um pouco mais apertada.
LA – Uma das coisas que eu li sobre ti: «ele não é assim, aquilo é um “boneco” criado».
SS – [Gargalhada]

«As pessoas não sabem mesmo nada de mim. As que dizem este tipo de coisas [que ele é arrogante, por exemplo] são crianças de 14 anos, gordas, cheias de acne, com um pacote de Ruffles na mão, com o óleo a cair para o pacote, a falar mal de outros atrás de um computador. Não podemos levá-las a sério», diz Salvador Sobral.

A música chegou a todo o lado. Há até um vídeo da Nova Zelândia de alguém a cantar a sua canção.
LA – Horrível, um barbudo horrendo. Primeiro, nem quis ouvir. Depois, lá ouvi 10 segundos – que horror. Aquilo é para o lixo. Delete forever. Não se faz isso ao Amar pelos Dois.
SS – Pois, é o problema do YouTube.
LA – É conspurcar uma coisa bela, belíssima. Lindíssima. Também vi uns tipos do death metal a fazer a cover. Outro lixo. Safa.

É mau que um tipo Nova Zelândia se lembre de cantar a música que ganhou o festival da canção em Portugal?
LA – Não é mau, como dizes. É falta de sensibilidade e de inteligência, apenas.
SS – Isso é o que eu digo. Mas depois dizem que sou um arrogante.
LA – Deixa, também devem dizer o mesmo de mim.
SS – As pessoas não sabem mesmo nada de mim. As pessoas que dizem este tipo de coisas são crianças de 14 anos, gordas, cheias de acne, com um pacote de Ruffles na mão, com o óleo a cair para o pacote, a falar mal de outros atrás de um computador. Não podemos levar a sério essas pessoas.
LA – [Gargalhada] E alguns que não têm 14, mas 40. Ou mais.
SS – Mas sempre com um pacote de Ruflles a comentarem. São essas as pessoas que dizem esse tipos de coisas.

A data – 13 de Maio, o penteado – igual ao de Éder, o país – tal como a Grécia quando venceu a Eurovisão, Portugal é Campeão Europeu, e mais: tal como a Grécia em 2004, vencendo a equipa da casa. Apenas coincidências?
SS – A sério? Só sabia do Éder. Acho que há coincidências e gosto de coincidências.

No escurinho do cinema

Depois da música, que outros interesses?
SS – A seguir à música vem o cinema. Gosto muito de Wim Wenders e Paris Texas é o filme que mais me marcou. Aliás, passa agora um ciclo de Wim Wenders no Monumental. Vou sempre sozinho ao Monumental. Continuo a ir, uma vez por semana e, engraçado, no Monumental as pessoas não se metem nem chateiam. São intelectualóides.
LA – Não sabem quem és (risos).
SS – Não sabem nem querem dizer que sabem. Como estou numa fase francesa, tenho visto muitos filmes franceses. Até estou a aprender francês.
LA – Adoro falar francês. Ultimamente têm passado umas belas séries francesas na RTP2, mas tu não tens televisão, não é? Quando vivia em Lisboa, ia muitas vezes sozinha ao cinema e cheguei a ver várias vezes o mesmo filme, porque me esqueço da história. Só ao fim de um bocado é que percebia. Tenho uma memória incrível para algumas coisas, mas para outras é fora. Como nas anedotas, esqueço-me sempre do final das anedotas e assim acho sempre imensa graça! (risos) O meu último filme em sala de cinema foi o Match Point [Woody Allen], já faz uns anitos. Agora, apanho todas as reposições na televisão. Gosto de ver filmes em casa.
SS – Eu acabei de ver Alice nas Cidades.

Cinema serve-vos de inspiração?
SS – Componho mais letras do que música. Mas tudo isso me inspira.
LA – Já escrevi muita poesia, quando era jovem. O meu primeiro livro é uma coletânea de poemas de juventude, foi editado em 1984. Não passou o tempo daqueles poemas. Letras de canções, poucas. Fiz o Para Ti, do Sem Açúcar (1980), para o tema do Zé da Ponte, o Da Noite foi musicado para o álbum Perto de Ti (1982) pelo Luís Pedro Fonseca, com quem fiz duas letras em parceria, o Perto de Ti e a Terra Prometida, do álbum homónimo, de 1986. Em 2010, fui convidada para escrever a biografia do meu pai – José Águas, o Meu Pai Herói, que foi editado em 2011. Já vi que não conheces, depois mando-te um.
SS – Agora estou ler O Idiota, do Dostoievski. Estou a demorar imenso tempo, estou quase a desistir. Imediatamente antes li O ano da morte de Ricardo Reis, do José Saramago). Bateu-me muito.
LA – Também a mim. Que livro incrível, um dos meus livros da vida.

Gostam de musicais?
SS – Não. Ui, não vi La La Land.
LA – Também não vi. Mas depois há o Música no coração, O livro da selva, que é maravilhoso. Viste o filme? Que temas! «Eu uso o necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais» (canta). Adoro esse filme e a banda sonora!
SS – E os Aristogatos.
LA – Esse não vi.

Quase vegetarianos

Reparamos que a Lena traz na mala uma chávena de louça para o café. Porquê?
LA – Por causa das toxinas do café a ferver em cima do plástico. Sou quase vegana. Ainda como peixe, mas cada vez me faz mais impressão pensar que morrem sufocados ou com anzóis entalados na garganta. Está por pouco, por muito pouco.
SS – Animais, só peixe.
LA – E ovos, só os que compro no mercado a uma velhota que tem galinhas.
SS – Estive um tempo sem comer ovos, agora voltei. E queijo, comes queijo? Voltei a comer queijo há uns tempos.
LA – Queijo, já não. Falámos disso na noite em que nos conhecemos em Óbidos. Que já tinhas deixado de comer carne há uns anos.
SS – E laticínios. Mas um dia, a situação já estava controlada e voltei a comer.
LA – Comecei a ser vegetariana com 16, 17 anos. E fiz a gravidez sendo vegetariana.
SS – Os bebés que nascem hoje tem probabilidades de terem dois cancros, sabiam?
LA – O dinheiro manda. As pessoas são enganadas e envenenam-se sem saberem.
Entretanto, a esperança de vida aumentou.
LA – Uma esperança da vida que não interessa nada.
SS – As pessoas estão sem qualidade de vida. Alguns, são expulsos pelos filhos.
LA – Os velhotes tomam drogas para tudo. Para dormir, para acordar, para a tensão arterial, para a circulação… eu sei lá.