As pessoas, seres banais e extraordinários

Notícias Magazine

Até começar a trabalhar em jornais, nunca tinha pensado, nem remotamente, ser jornalista. Em casa dos meus pais, o Diário de Notícias chegava todas as manhãs pela janela, dobrado em triângulo e atirado por um ardina com grande pontaria. Os meus avós preferiam O Século, e não sei se pela janela ou se comprado no quiosque, que os meus avós gostavam dos seus passeios.

Eu usava o jornal para fazer riscos de alto a baixo nas notícias, serpenteando pelos intervalos das palavras. Aprendi a ler com os títulos dos jornais e a primeira vez que tive noção disso foi no dia a seguir à morte do ator João Villaret. Morreu João Villaret, li e não sei se fiquei mais marcada pela perda dele, que tinha um programa semanal de poesia na televisão, muitíssimo popular, se pelo facto de ter lido sozinha. Aprendi a ler no dia 22 de janeiro de 1961, tenho a certeza. Também gostava, nos jornais, das imagens duplas de «veja as diferenças». Observava-se com muita atenção até perceber que o chapéu de um lado tinha uma pena e o do outro não. Que estavam à vista quatro ou três patas de um cão. Que um vaso estava num desenho e não no outro. Coisas assim.

Mais tarde habituei-me a comprar o Diário de Lisboa e o República, já depois do 25 de Abril, e o Expresso. Entretanto já o meu irmão mais velho era fotógrafo, primeiro n’A Capital, depois n’O Século e no Cinéfilo, finalmente no Diário de Notícias, onde acabou por reformar-se, muito doente. Mas eu tinha pensado outras coisas para a minha vida, embora nunca tenha feito planos de médio prazo, muito menos de longo.

Aconteceu por acaso isto de entrar para o jornalismo, e por responsabilidade de Miguel Serrano, do República, pai de dois amigos. Eu precisava de dinheiro, ele precisava de traduções. Textos do Nouvel Observateur, que entregava escritos à máquina – tenho uma Hermes Baby linda mas é difícil arranjar a fita de tinta preta e vermelha. Pouco a pouco, fui entrando no jornalismo – a miúda tem jeito para escrever, era a ideia – e sempre pela mão do Miguel, mais tarde do Vicente. Não sabia nada e fui aprendendo com os mais velhos, com os chefes, com as discussões e as leituras dos outros.

Podia ter ido para outros caminhos. Ainda fiz umas cadeiras na Faculdade de Letras, mas já tinha o primeiro filho e o tempo era curto para chegar ao fim do dia com as coisas bem feitas em todos os tabuleiros. Passados quarenta anos, continuo a sentir o mesmo entusiasmo com aquilo que para mim é o essencial da profissão: conhecer pessoas. Não estou a falar de pessoas importantes e com poder, geralmente com um recado para transmitir e a deixar entrever pouco do que são de facto. Pessoas. Nas últimas semanas tive essa sensação de prazer, essa sorte extraordinária de estar em contacto com pessoas que antes não conhecia ou conhecia mal. Ana Paixão, Teresa Nunes da Ponte, Armando Faria, Margarida Santos Sousa, Anne-Marie Metailié, Gerald Bloncourt e Ruy Castro. Entre todos eles, um universo que inclui uma professora de literatura comparada na Sorbonne, uma arquiteta, um empresário, a porteira portuguesa que abriu as portas para socorrer dezenas de pessoas na noite do atentado ao Bataclan, uma editora, um fotógrafo com 90 anos bem preenchidos, um escritor genial. Pessoas, banais e extraordinárias como todos nós, porque somos sempre únicos. É disto que gosto na profissão que me construiu e que eu construí para mim.

[Publicado originalmente na edição de 12 de junho de 2016]