A luta pelos passeios rebaixados. Mesmo

Notícias Magazine

Um dia vai haver um calceteiro, um chefe de calceteiros, um di­retor do departamento de calçadas, enfim, um vereador ou mesmo um presidente de câmara – qualquer câmara do país – que vai par­tir um pé. E vai ter de andar de muletas ou de cadeira de rodas. E, quando quiser sair de casa para, enfim, não passar mês e meio ou dois meses fechado, sem ver o sol, sozinho, talvez aí, então, ele perceba.

Ou então, vá lá, vamos pensar num cenário mais verosímil. Não vamos pensar que é o próprio – porque, afinal, ninguém vai andar de cadeira de rodas sozinho. Vamos pensar que é a mulher, a namorada do próprio a quem lhe acontece um acidente. E ele, simpático, vai que­rer dar-lhe um passeiozinho de domingo, ao sol. E leva-a a qualquer lado. E, quando saírem do carro e ele começar a empurrá-la pelo pas­seio fora… Ele, pessoa de grande consciência social, capaz de alar­dear os benefícios da acessibilidade. Dependendo do nosso grau de imagi­nação, até podemos pensar que este homem seja pessoa de responsa­bilidades, capaz de lutar por esses direitos em «sede» de orçamento, da câmara, do Estado, de todos os institutos em que presidiu.

E aí estará ele a tentar atravessar a rua. Perante um passeio­zinho de três centímetros, numa zona que supostamente é, como se diz, rebaixada, junto da passadeira de peões. Aí está ele, com a sua mulher e a cadeira de rodas. Inúteis perante um passeio de três centímetros numa zona que até se chama rebaixada e foi feita de propósito para – mais um palavrão – pessoas de mobilidade redu­zida. Ele vai perceber que o que ele julgava que eram, afinal, passos no caminho da acessibilidade – passeios rebaixados – são, afinal, um enorme bloqueio.

Porque na verdade não estão rebaixados – ao nível do alca­trão. Porque ninguém explicou ao calceteiro, ao chefe de calcetei­ros, ao diretor do departamento de calçadas, enfim, ao vereador ou mesmo ao presidente de câmara que um passeio rebaixado ao qual foi deixado de fora um degrauzinho de três centímetros não serve para quase nada. É um obstáculo quase tão grande como um passeio normal, desses de dez centímetros. Alguém explica como é que uma cadeira de rodas sobe um passeio de três centímetros? Nem com o mais potente dos motores.

Sei disto porque estou, eu própria, com mobilidade reduzida – nada de grave, coisa para um mês de pé engessado. E tentei fazer um caminho de três ruas – por junto seis atravessamentos de estrada – da minha casa até ao jardim mais próximo. Já o tinha feito com car­rinhos de bebés. Os bebés são leves e as suas cadeiras também – coi­sa diferente do meu corpo de adulta numa cadeira de rodas. Quem me empurrou que o diga. Chegámos ao primeiro passeio, para o qual eu sempre tinha olhado com naturalidade e razão pela qual resolvêra­mos dar «uma volta ao sol» e a cadeira embatucou. Tive de me levan­tar, esperar que a cadeira fosse elevada para regressar ao assento se­guro do outro lado do passeio. Isto já para não falar das rampas que alguns desses passeios tinham, e que colocavam em perigo a minha segurança – mesmo sendo empurrada, pior ainda se fosse sozinha.

E também sei isto tudo agora porque falei com uma pessoa que não tem a mesma sorte que eu – não vai largar a cadeira de rodas da­qui a um mês e meio, vive com ela há 24 anos e vai passar nela o res­to da vida. E perante a minha surpresa: «Mas para que raio servem os passeios rebaixados?», a Marta Guimarães Canário riu-se e disse: «Para nada!» E eu: «Como é que tu consegues fazer a tua vida?» «É muito difícil. Podia ser mais fácil mas é muito difícil», respondeu-me ela. «Já estou numa segunda fase: penso sempre no que é que posso fazer, como vou poder fazer isto ou aquilo, contornando os obstácu­los.» E eu que sempre olhara para ela com imensa naturalidade – profissional de sucesso na NovaBase, miúda que conheço da praia, sempre bem-disposta, até a tomar banhos de mar numa cadeira adaptada – passei a pensar nela como uma heroína do quotidiano. Na verdade, se esta crónica servisse pelo menos para alertar um cal­ceteiro que fosse de que o passeio rebaixado tem de estar ao nível do chão já lhe dava uma grande ajuda. Espalhem a mensagem.

[Publicado originalmente na edição de 15 de março de 2015]