Sonhar a Revolução
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Nasci em 1971 e, como toda a gente, gosto de encontrar sinais que provem haver-se tratado de um ano excepcional, para me sentir excepcional e ajudado no destino. Claro que ficcionamos o que queremos para mais bem compor a nossa realidade, e eu sou um ficcionista, rendo-me a qualquer mistificação que me ofereça felicidade. Dito isto, o ano de 1971 foi mesmo importante e lindo. Não sou eu quem o precisa de dizer, basta que cite o Luís de Freitas Branco, que acaba de publicar o livro “A revolução antes da revolução” onde explica como a música portuguesa prepara o clima perfeito para uma mudança final de consciências.
Sabemos bem que a nossa Ditadura foi caindo por caducidade íntima, uma espécie de bolor que atacou até os fascistas, cada vez menos capazes de justificar o horror que precisavam de defender. O futuro era todo avesso ao regime, era fundamental seguir a via democrática, reconhecer os direitos fundamentais, evoluir no combate ao racismo, acabar de vez com a ocupação de territórios estrangeiros. Era imperial caminhar no sentido da paridade entre homens e mulheres. Faltava fazer tudo. O fascismo era de tal modo injusto que não havia mais como fazer sua defesa.
No silêncio imposto pela censura, a música foi eventualmente a arma mais corrosiva. Criada tantas vezes no exílio, encontrando a bravura de alguns editores portugueses, como o brilhante Arnaldo Trindade, a música fertilizou os espíritos dos portugueses, revelando-se o discurso onde as fundamentais aspirações se debatiam através das metáforas mais inteligentes. Em 1971, a mestria de José Mário Branco, Sérgio Godinho e José Afonso, entre outros, mas sobretudo estes, deita à rua uma voz que não admite mais a obediência cega à Ditadura. Gravando e editando três dos discos mais adorados da música portuguesa, todos se colocam como resistência e disseminação da ideia democrática. A partir da melhor música de que Portugal foi capaz também se conseguiu a melhor vitória, a da Revolução que acaba com o regime opressor.
O livro de Luís de Freitas Branco é de um detalhe admirável. Para sanar qualquer dúvida acerca do clima musical ao tempo da Revolução, a sua pesquisa funciona como um transporte no tempo que nos deixa ver o ano de 1971 à lupa, para verificarmos como se cozinha uma mudança, como se juntaram compositores tão geniais que sentiram necessidade de fazer da canção uma arma. “A revolução antes da revolução” é imperdível. Pela música e pela democracia. Pela consciência. Pela defesa de um país que foi sonhado e conquistado a custo. Para que não se perca o que seria mais leviano perder: a liberdade.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)