Valter Hugo Mãe

Senhor García Marquez


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Acredito que o querido Gabo tivesse pedido para destruírem o livro que não pôde terminar como quem pede piedade para um filho. É um pedido de socorro, não acredito que tivesse a intenção sincera de ver o texto desaparecer. Os escritores destroem aquilo que querem que não se leia. Tudo quanto sobra, por mais estranho, inclui uma mensagem que se pretende deixar, nem que apenas para criar o caos, insultar, vingar, amar, assumir, lembrar, incluir, nem que apenas para falhar, porque a humanidade acontece em tudo quanto se levante a dúvida e de que se desconfie.

Claro que era fundamental, mais tarde ou mais cedo, publicar o inédito de Gabo, “Vemo-nos em Agosto”. Não é livro para salvar o autor do esquecimento, não traz nada que lhe fizesse falta, mas também não prejudica, muito ao contrário, constitui o privilégio de mais um tempo com o génio, o privilégio de tantas passagens com seu humor leve, sua maneira de retratar o espírito humano, é a oportunidade imperdível de mais uma volta na companhia de um dos autores que mais amamos.

Parece-me um esboço de Almodóvar. Uma tragédia cómica em torno de uma mulher que se liberta a passos pequenos. As personagens são simples, sem grande detalhe, mas o que acontece vai criando a impressão da mesma circularidade de que Almodóvar gosta tanto, como se a vida nos fizesse descobrir o seu sentido num efeito de espelho. No livro, como em tantos filmes do mestre espanhol, as pessoas parecem capturadas num certo destino. O que se passa e aquilo que somos vai ao encontro de algo a que não se pode escapar. Alguns nervos, uma mulher comum, os homens vistos também como objectos, o desejo que se descontrola, a filha no convento, tudo cria uma atmosfera de ironia fina que não impede a ponderação da decadência como evidência que, ao fim, se aceita.

Gabriel García Marquez não deixaria senão uma maravilha. Simples, sem demasiado trabalho, ainda assim este livro oferece um prazer intenso. Uma leitura viciante que nos impede de parar até que saibamos que a senhora professora se vingou de ser mulher. Tive a impressão de a ver feliz, nada errada, muito livre, e feliz. Nem que uma vez por ano. E, em todas as páginas, torci para que não esperasse pelo 16 de Agosto e fizesse sua bravura a toda a hora. Fiquei apaixonado por Ana Magdalena Bach. Quero vê-la na minha ilha. Quero dormir com ela.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)