Joel Neto

Pedra sobre pedra


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Há pouco passei pela janela da sala: rodei ostensivamente o pescoço no sentido contrário. Logo de manhã, acabado de mudar a fralda ao Artur, tive de ir à porta da cozinha deixar o saco de lixo do quarto dele, malcheiroso como sempre: fixei o olhar nos sapatos, abri a porta, atirei o saco e tornei a fechá-la – sempre sem tirar os olhos dos pés. Ando a evitar o jardim porque, passava pouco das sete, a terra tremeu. Normalmente eu já estaria acordado há muito, mas o Artur teve uma noite má, nós tivemos uma noite má com ele, e aconteceu que às 07.20 horas, precisamente a essa hora, dormitávamos todos. Acordei de imediato, sentindo que a cama oscilava. Tentei medir o tempo: 15, 30, 40 segundos – mas deixei-me adormecer de novo.

Quando acordei de vez, eram nove da manhã, e o meu filho, do outro lado do corredor, continuava em silêncio. Disse à Marta: “Não imaginas o sonho que eu tive”. E ela: “Não foi um sonho, também acordei”. Precipitei-me para o telemóvel: houvera de facto um sismo. De apenas sete segundos, afinal, mas com intensidade suficiente para deixar estragos. No Facebook já circulava a foto de uma estrada interrompida devido aos esborralhamentos.

Lembrei-me da minha história com os sismos. Até ao dia em que voltei para a ilha, o maior que sentira até fora em Lisboa. Entretanto, só não me lembro de quantos senti nos últimos 12 anos porque faz parte da condição de ilhéu sublimar essas coisas. Mas dois deles foram há não muitas semanas, Outono adiantado já, estava eu naquela praceta do Pico da Urze onde paro o carro para ir buscar o garoto ao colégio. Afloraram logo às janelas várias senhoras, desabafando.

E agora aqui estou, com medo de olhar para o jardim. No dia em que aluir um só destes muros com que reordenei a orla da mata, sustentando a encosta, não saberei o que fazer. Temo pela cabana de trabalho, pelo pagode de verão, pelas acácias. Temo pelos trilhos de pedra e pelas flores, pelas vedações dos cães e por todos os recantos cujo nome o Artur já vai ouvindo. Tenho tantos planos para o meu filho e para estes recantos. E é tão bom fazê-los – mesmo que, depois, ele venha a virar costas a tudo isto.Mas não: ainda não foi desta. A certa altura, já não muito antes do meio-dia, ganho enfim coragem para olhar pela janela e não vejo nada fora do sítio. Então, abro a porta de uma vez e corro a esquadrinhar os muros e as árvores. Nada. É um profundo alívio.

E é, ao mesmo tempo, uma angústia difícil de definir, pequenina mas insofismável. Estranha vida esta, a do ilhéu – estranha condição. E o meu filho, coitado, também a traz.