Valter Hugo Mãe

Nat King Cole


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Uma voz pode ser lugar e tempo inteiros. Uma espécie de modo de viver, de modo de ser, que nos invente a totalidade do que nos basta, do que nos inspira. Quero dizer, algo onde se cabe, de onde se sente termos origem e destino. Não identifica apenas quem a tem, identifica quem por ela se reconhece e se comove.

Tenho a impressão do impossível perante a voz de Nat King Cole. O seu veludo, a educação extrema onde tudo é melodia e nada é grito, o timbre, a generosidade caudalosa do som, o seu jeito nocturno, soturno, delicado, absolutamente afinado, tudo conspira para a raridade do seu dom e da sua inteligência. Sempre o junto com outras figuras maravilhosas, como Johnny Hartmann, Billie Holiday ou Ella Fitzgerald, mas depois sinto que há nele uma fortuna maior, algo que não tem que ver com o repertório (segundo o qual preferiria a senhora Holiday). Cole tem a elegância extrema, uma espécie de virtude que não se prejudica nem com o facto de ter cantado algumas das canções mais pífias do seu tempo.

Como com a voz de nossa mãe, de alguém que amamos, a voz de um filho ou a que sonhamos para Deus, a voz de Nat King Cole acompanha-me como uma ideia pura. Uma ideia da capacidade de perfeição que se manifesta mesmo à revelia da falha humana. Na boca de Cole acontece o milagre da perfeição como nem o seu coração mais preparado haveria de ter como garantir. O que faz Cole é um modo de transcendência. Um gesto sobre-humano.

Emigro para a sua voz sempre que me quero seguro ou anseio por justiça. Escutando ou lembrando apenas, a sua voz tanto me leva de volta a casa como me diminui a angústia e a fúria, oferece-me o esplendor que me convence de que, afinal, existe um caminho até onde cada coisa presta um serviço à ideia de humanidade pela qual corro. Em tantas ocasiões, mudo, percorro na memória as palavras agora sagradas “fly me to the moon and let me play among the stars”, e estou tão distante do corpo quanto coincido com meu próprio avatar de equilíbrio e justiça. Estou nessa dimensão imaterial onde, afinal, radica tudo quanto jamais nos abandonará: a identidade que nos define e que sabemos ou não educar e nutrir.

Deixei de ouvir Nat King Cole pelas janelas das casas na rua. Antigamente, ainda acontecia. Agora só se ouve uma trapalhada refilona que não faz paz nem parece única. Por causa disso, tenho a impressão de que a dureza de ouvido está a desgraçar a felicidade. Até a tristeza é mais desamparada, sem compensação alguma que a melancolia do senhor Cole também conforta. É tudo uma tragédia.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)