Margarida Rebelo Pinto

Lar, amargo lar


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Consagrei um par de horas a ler o livro “Identidade e família”, tentando ser o mais objetiva possível, embora tenha interiorizado há várias décadas algo que o António Alçada Baptista tantas vezes me disse, “se fosse um objeto, era objetivo, como sou sujeito, sou subjetivo”. De tudo o que li, com exceção da prosa límpida e ausente de qualquer moralismo de Jaime Nogueira Pinto, que aborda o tema da família através de grandes clássicos da literatura, identifiquei em quase todos os textos a intenção de exaltar a família como um estandarte contra o mundo e de fazer dos valores tradicionais uma cruzada, como se a realidade fosse um monstro vil e amoral que quer atacar a família. Não gostei de muitas coisas que li e ainda menos do tom em que muitas ideias estão expressas. Não gostei sobretudo da apropriação de ideais tradicionalistas ao serviço de um fanatismo que ignora os direitos e liberdades fundamentais do ser humano e que tenta arrasar e destruir, sem conhecimento de causa, entre outras realidades, famílias com pais do mesmo sexo.

As ideias perigosas são aquelas que partem de axiomas que os autores assumem como verdades únicas para, a partir deles, fazerem as mais variadas e rebuscadas associações com outras ideias, com o fim de criar uma doutrina. Outra ideia transversal à maior parte dos textos é que o amor e a família são a mesma coisa. Os devaneios vão mais longe, quando é afirmado que o nascimento de um ser humano só é possível quando existe uma relação afetiva/amorosa entre um homem e uma mulher. Alguém faltou às aulas de Biologia e não estudou o aparelho reprodutor. Os bebés nascem da fecundação, o amor é outra coisa. Voltando ao tema acima referido, é lamentável que o dedo inquisidor seja apontado a todo o tipo de famílias ditas não tradicionais. Conheço várias e conheço os filhos que estão a criar com todo o amor: são crianças equilibradas, seguras e felizes. Outra ideia, a de institucionalizar o trabalho da dona de casa, num texto carregado de preconceitos, exaltado e contraditório, que começa por acusar o Estado de interferência nos valores da família, mas que acaba por reclamar do mesmo Estado a dita institucionalização, é tão absurda quanto disparatada. Em nenhuma democracia que se preze haverá espaço para a regressão de direitos fundamentais conquistados. A bela recatada do lar, aprisionada no triângulo infernal dos três F: fogão, fraldas e ferro de engomar, sujeita às ordens e caprichos do marido, não vai regressar. Acabou para sempre a era das incubadoras e da realização, tantas vezes forçada, da felicidade feminina através da maternidade.

O lar, esse espaço em que a família idealmente interage e se fortalece, é frequentemente um lugar de opressão e de terror, de violência e de maus-tratos, de exercícios de prepotência e de atos repetidos de desrespeito. Não existem famílias perfeitas. Existem pessoas com maior ou menor consciência do que é uma família.