Valter Hugo Mãe

Família


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Nenhuma família é normal e, ao mesmo tempo, todas as famílias são normais. A família é uma construção de esforço que, se tiver um pouco de sorte, se justifica pelo afecto. Nem sempre foi assim. A família tradicional era sobretudo um acordo de interesses, no qual a mulher se encontrava substancialmente secundarizada, entregue pela figura masculina do pai à figura masculina do marido como uma mercadoria à qual se exigia integralidade e abnegação. Ainda sobra certo mofo deste hábito. Ainda sobra certo mofo desta convicção de que a mulher é estúpida e deve sobretudo obediência à tutela de um homem. Mas isso não é tradição que se deva preservar. A estupidez não deve ter lugar e só pode deixar saudade em quem for estúpido também.

Debater o cuidado com a família não pode ser acerca de como são as famílias, quem as compõe, porque necessariamente todos nascemos nesse complexo tecido de gente que se esforça por ter sentido mas que é acometido de estranhezas, alçapões, compromissos à risca, ideias precipitadas ou maduras.

Cuidar da família tem de ser defender seu direito à habitação, ao trabalho, à dignidade, à alimentação, à escola, ao livro, ao tempo livre, à autodeterminação, à alegria. A única família que nos deve preocupar é aquela que não habita, não tem trabalho, não come, não se vê respeitada, não pode estudar, não acede a um livro, não descansa, não tem capacidade de decidir, não vislumbra qualquer felicidade. Estas são as famílias que nos merecem atenção. As outras, com mais homens ou mulheres, mais filhos ou mais sobrinhos, mais tias e mais avós, não são assunto político, são assunto para romances e conversas entre amigos. Todos nos demoramos a discutir como são aqueles tios esquisitos, como são deslumbrantes as primas e os primos, como também há gente má lá para as linhagens de segundo grau. Mas isso não destrói a família. Isso é a normalidade. Todas as famílias são normais porque todas as famílias são a sorte e o azar que têm.

Nem o presépio é convencional. Maria engravidou do Espírito Santo. São José perfilhou uma criança que adoptou. Cristo é o grande filho adotivo da História do Mundo. Para o resultado cristão, tanto valeria que Maria tivesse a companhia de São José ou não. Poderia seguir sozinha ou ajudada por algum amigo ou amiga. A sua família, de todo o modo, seria sempre normal. O que não seria normal haveria de ser que alguém a quisesse desqualificar por viver a sua vida como entende e como pode, que é o que nos acontece a todos. Vivemos como entendemos, mas talvez estejamos acima de tudo a cumprir o caminho de que somos capazes.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)