Joel Neto

As pequenas coisas


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

“Já viste, por exemplo, um parafuso?”, hei-de eu perguntar ao meu filho. Talvez devamos começar por apertar um, o que implicará desde logo uma decisão sobre que chave usar. Porque, à partida, um parafuso pode ser apertado com uma chave de fendas ou uma chave phillips, uma chave sextavada, uma chave de bocas (ou o correspondente roquete) e mais uma série de outras chaves, ferramentas e pontas – pozidriv, torx, allen, robertson, tri-wing, torq-set -, cada conjunto para a sua cabeça específica.

Depois há a rosca. De que parafuso estamos a falar: um parafuso para madeira ou para metal? Com ou sem porca? Normal, auto-roscante ou até autoperfurante (ou autoperfurante o suficiente para dispensar um berbequim)? E o material? É em ferro ou em latão, em bronze ou em titânio? Ah, é em aço? Comum ou inoxidável? E que comprimento precisa de ter esse parafuso? E que espessura? E que relação entre os dois? É para agregar que tipo de materiais, afinal? Com que funções? Durante quanto tempo? A partir de que posição? Com que espaço de manobra? E não será melhor levar anilhas?

Às vezes gosto de ir ao Nildo Neves e de ficar ali, com o Duarte e os outros, a conversar sobre parafusos. Outras vou à Electro Cruzeiro e deixo-me um bocado a percorrer com os dedos as mil gavetinhas com parafusos de todos os géneros e fitos. Nunca chego a aborrecer-me.

Há uma coisa no parafuso que o incluiu automaticamente no rol das invenções abençoadas: a sua extraordinária simplicidade. De resto, a história comprova-o. Ainda a Antiguidade Clássica não se tinha concluído e já Arquimedes o usava, não para agregar, mas para transportar água de uma cota inferior para uma superior, moldando os seus princípios a outra utilização ainda. De lá para cá, o parafuso agregou noras e caleches, casas e automóveis, aviões, foguetões e microprocessadores tão minúsculos que cabem dentro deste supercomputador que levamos no bolso.

É incrível, o que o parafuso fez ao longo da sua história. Esteve em todo o lado, conheceu toda a gente, resolveu todos os problemas. Com um parafuso bem escolhido e apertado, dois materiais podem nem sequer conseguir separar-se, mesmo que queiram: quanto mais tentarem afastar-se, mais a força avassaladora daquela espiral os levará de volta para os braços um do outro.

E talvez eu consiga que o Artur seja capaz de se maravilhar com uma coisa assim, pronto. Com a possibilidade de entendê-la. De dominá-la. De apreciá-la – e de construir a partir dela uma narrativa. Já quanto à escolha do parafuso a usar, essa dou-lha de graça: em sendo nos Açores, sempre inoxidável. E mesmo assim é capaz de oxidar.